Folha de S. Paulo


EUA estudam criação de espaços para consumo legal de heroína

Usuários de heroína nos Estados Unidos morrem em becos atrás de lojas de conveniência, em banheiros de lanchonetes e nas calçadas —porque não há ninguém por perto para socorrê-los quando sofrem uma overdose.

O número alarmante de 47 mil mortes por overdose nos EUA em 2014 —60% delas de heroína e analgésicos relacionados, como o fentanil— está levando políticos a estudar uma possibilidade antes impensável: a criação de espaços sancionados pelo governo onde os usuários possam injetar drogas sob supervisão médica.

"A situação está saindo de controle. Precisamos ajudar os dependentes químicos, agora", disse a deputada estadual de Nova York Linda Rosenthal, que está redigindo um projeto de lei que permitiria a criação de espaços supervisionados de consumo de drogas que também incluíssem serviços de tratamento.

John Moore/Getty Images/AFP
Dependente químico injeta heroína em sua casa, em New London, Connecticut, Estados Unidos
Dependente químico injeta heroína em sua casa, em New London, Connecticut, Estados Unidos

"A ideia não deveria ser rejeitada de antemão. Não estou vendo ninguém propondo qualquer outra coisa."

Os críticos da guerra às drogas discutem há muito tempo a necessidade de uma nova abordagem à dependência química.

No entanto, só agora a ideia de permitir locais de consumo supervisionados está sendo aventada por parlamentares estaduais de Nova York, Maryland e Califórnia, além de autoridades municipais de Seattle, San Francisco e Ithaca (Nova York). Eles lembram que programas de troca de agulhas e seringas geraram controvérsia no passado, mas hoje existem em 33 Estados americanos.

EXPERIÊNCIAS E RESISTÊNCIA

Pontos legais para consumo de drogas existem há anos em lugares como Canadá, Holanda e Austrália, mas enfrentam desafios legais e políticos consideráveis nos Estados Unidos, incluindo a crítica de que equivaleriam à aceitação de uma epidemia que deveria ser combatida com prevenção e tratamento.

"É uma ideia perigosa", diz John Walters, que comandou a guerra às drogas no governo do presidente George W. Bush. "Seus defensores parecem pensar que, para ajudar pessoas doentes, devemos mantê-las doentes, mas confortavelmente doentes."

No entanto, seus proponentes argumentam que esses locais não proporcionam aos dependentes químicos apenas um lugar para consumir drogas, mas também atendimento médico, psicológico e leitos. Em muitos casos, os usuários frequentam esses locais para se injetar com heroína ou opiáceos perigosos como o fentanil, mas alguns tomam analgésicos na forma de comprimidos.

John Moore/Getty Images/AFP
Dependente químico injeta heroína nos EUA; país debate criação de centros para consumo legal da droga
Dependente injeta heroína nos EUA; país debate criação de centros para consumo legal da droga

AUSTRÁLIA

Desde que o Centro de Injeção com Supervisão Médica de Sydney foi aberto, em 2001, mais de 5.900 pessoas já sofreram overdose ali, mas não houve nenhuma morte. A mesma situação se repete no Insite, em Vancouver, Canadá. Cerca de 20 overdoses ocorrem ali toda semana, mas ainda não houve nenhuma morte no local, operado em conjunto por uma organização local sem fins lucrativos e a Autoridades de Saúde da região costeira de Vancouver.

O centro de Sydney ocupa um espaço entre um hostel e um restaurante chinês, em Kings Cross, o bairro da prostituição na cidade. Tirando o guarda de segurança ao lado da porta de frente, a aparência é de uma clínica de saúde como outra qualquer.

Pelo menos dois profissionais sempre monitoram a sala, incluindo um enfermeiro. Eles não são autorizados a administrar drogas, mas o centro fornece agulhas esterilizadas. Se um paciente sofre uma overdose, o enfermeiro administra o antídoto Narcan, que reverte a overdose rapidamente.

Depois de consumir a droga, os usuários vão para uma segunda sala, onde o ambiente é muito mais acolhedor. Há luzinhas coloridas de Natal penduradas do teto e revistas e livros em estantes. Os clientes podem relaxar enquanto tomam um chá, um café ou conversam com os funcionários. Alguns ficam apenas 15 minutos no local; outros passam horas. Eles saem por uma porta dos fundos, para proteger sua privacidade.

O centro foi aberto a título experimental, por 18 meses, depois de ser verificado um aumento agudo do consumo de heroína em Sydney. O experimento foi prorrogado diversas vezes pelo governo, até 2010, quando foi implementado de modo permanente. O local é operado pelo setor de serviços sociais da igreja Uniting e é financiado por dinheiro apreendido pela polícia, fruto de crimes diversos.

HOLANDA

Uma clínica em Amsterdã —um dos três locais para injeção na capital holandesa— vai além, distribuindo heroína gratuita a viciados de longa data, como parte de um programa governamental criado para dependentes inveterados que, de outro modo, poderiam cometer um crime para comprar a droga.

Cerca de 80 usuários frequentam o local até três vezes por dia. São homens, em sua maioria, e a idade média deles é de 60 anos. Muitos começaram a consumir a droga nos anos 1970 e 1980.

"O ideal, para nós, seria que eles reduzissem o consumo", disse Fleur Clarijs, médica do local. Mas, segundo ela, a finalidade principal do centro é reduzir o risco aos usuários —e seus efeitos sobre a comunidade.

CANADÁ

No bairro decadente de Downtown Eastside, em Vancouver, o Insite oferece serviços de tratamento aos pacientes no andar de cima do local onde eles se injetam. A clínica informou que um terço dos frequentadores do local pedem para ser encaminhados a um programa de desintoxicação.

Uma mulher que se identificou como Rhea Jean conversou com a Associated Press recentemente, depois de se injetar no local. Ela sentiu náusea e correu para fora para vomitar na calçada. Com o rosto coberto de crostas de ferida, a usuária de heroína aparentava ter muito mais que seus 33 anos de idade.

"É um ótimo lugar para usuários ativos, totalmente dependentes. Eles encaminham você para outros programas", disse Jean. Ela própria não procurou tratamento por meio do Insite.

Um homem de 65 anos que se identificou apenas como James porque está fazendo um programa de 12 passos que exige anonimato contou que usa heroína desde os 22 anos. Ele passou 17 anos sem se drogar, mas então teve uma reincidência. James contou que sofreu violência sexual na infância e passou 23 anos na prisão.

Ele disse que sempre volta a usar heroína porque a droga o liberta de seus problemas. O Insite é o único lugar onde ele pode ir e receber tratamento se apresentar uma reação negativa à droga.

"O pessoal dali já salvou minha vida três vezes", disse, acrescentando que a dependência de drogas não deveria ser demonizada. "Grande parte da sociedade ainda se nega a aceitar que é uma doença."

APOIO PÚBLICO

As três clínicas que a Associated Press visitou enfrentaram a oposição de políticos e membros do público na época em que foram inauguradas, mas conquistaram apoio aos poucos, em grande parte graças a estudos que apontaram para a redução das mortes por overdose e do consumo de drogas ao ar livre na comunidade em volta.

Uma pesquisa feita em 2010 com moradores e empresas de Kings Cross, por exemplo, constatou que há grande apoio ao programa.

O ex-primeiro-ministro canadense Stephen Harper e seu Partido Conservador quiseram fechar o Insite. O caso chegou até a Suprema Corte do Canadá, que em 2011 determinou que o governo deveria isentar o Insite de respeitar as leis de drogas dentro de seu recinto.

"O Insite salva vidas", escreveu a juíza Beverley McLachlin na decisão da Corte. "Seus benefícios são comprovados. Em seus oito anos de operação, não houve impacto negativo discernível sobre a segurança pública e os objetivos de saúde do Canadá."

DEBATE NOS EUA

Partidários da ideia nos Estados Unidos discutem há muito tempo os potenciais benefícios da criação de locais de injeção de drogas. Mas eles apontam para a triplicação das mortes por overdose de heroína e opiáceos desde 2000 como uma razão pela qual a sugestão está começando a ser considerada seriamente.

A morte dos atores Philip Seymour Hoffman e Heath Ledger mostrou que também celebridades enfrentam o risco de sofrer overdose sozinhas. Recentemente, foi revelado que representantes de Prince procuraram ajuda para lidar com sua dependência de analgésicos exatamente um dia antes de o músico ser encontrado morto.

Em um esforço para se proteger, alguns viciados estão tomando a iniciativa. Em Boston, depois de o Hospital Geral do Massachusetts ter equipado seus seguranças com Narcan, aumentou o número de viciados que se injetam nos banheiros e estacionamentos do hospital.

Em outra parte da cidade, uma ONG recentemente criou um espaço onde viciados podem ir depois de consumir drogas. Os usuários não podem se injetar no local, mas um enfermeiro monitora as pessoas na sala e intervém quando ocorre uma overdose.

FEDERAÇÃO E ESTADOS

As leis federais dos EUA proíbem a criação de espaços para o consumo de drogas, mas os defensores da ideia dizem que, se um Estado ou uma prefeitura municipal autorizasse a criação de um espaço desse tipo, as autoridades de Washington não interviriam, numa abordagem semelhante à resposta federal aos programas estaduais que permitem o consumo de maconha para fins medicinais.

Kevin Sabet, ex-assessor da administração Obama para questões ligadas à política de drogas, avalia como zero as chances de os locais de injeção serem oficialmente aprovados no futuro próximo. Ele acredita que seus proponentes buscam a legalização plena de todas as drogas e estão explorando a crise dos opiáceos para promover sua agenda.

O deputado estadual californiano Tom Lackey, que trabalhou na Polícia Rodoviária estadual por 28 anos, disse que entende que os proponentes buscam uma nova abordagem. Mas ele tem reservas profundas em relação a leis em seu Estado que possam criar clínicas onde usuários iriam para usar heroína, crack e outras drogas.

"Esses locais transmitiriam a mensagem de que é possível consumir drogas com segurança. A meu ver, não é possível consumir heroína com segurança", explicou.

Em Maryland, o deputado estadual Dan Morhaim é médico de emergências. Ele próprio já administrou Narcan "muitas e muitas vezes". Ele considera que seu projeto de lei de criação de locais supervisionados para injeção é apenas uma das muitas abordagens criativas que serão necessárias para resolver o problema da heroína. "Isso não vai curar todo mundo", disse. "Mas levar as pessoas de um comportamento mais perigoso para um menos perigoso já é um avanço."

Marianne Jauncey, diretora médica do Centro de Injeção com Supervisão Médica, em Sydney, disse que preferiria maneiras melhores de ajudar os dependentes inveterados. Enquanto isso não acontecer, seu centro vai trabalhar para manter os usuários vivos. "Dadas as histórias deles, acho que o mínimo que nós, como sociedade, podemos fazer é tentar", disse.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: