Folha de S. Paulo


Aos 10 anos, teatro na Cisjordânia prega resistência por meio da arte

Uma dúzia de meninos de 12 anos, alguns de metralhadoras de brinquedo na mão, berra. Mascarado, um deles grita para que os demais fujam, enquanto outros derrubam um colega, fingindo espancá-lo. A cena é parte de uma peça improvisada de alunos do Teatro da Liberdade do Campo de Refugiados de Jenin (Cisjordânia), que fez dez anos no mês passado.

O professor do curso infantil, o ator palestino Ahmad Tobassi, só intervém quando alguém se machuca: "Não digo às crianças o que acho das armas, só tento compreender de onde vem a inspiração".

O ator Muhammad Lachluch, 12, explica que a peça é uma visão do cotidiano no campo, de incursões de soldados israelenses às atividades de milicianos palestinos.

Ele é um dos 300 jovens que já passaram pelo Teatro da Liberdade, um peixe fora d'água no campo de refugiados de 0,5 km² com 17 mil habitantes onde centros culturais são raros. Atualmente, o local oferece um curso de teatro de três anos, gratuito, além de oficinas de cinema e redação criativa. Diversas produções já fizeram sucesso, atraindo 12 mil espectadores da Cisjordânia, muitas vezes lotando as 118 cadeiras.

Mas o preço pago pela companhia comunitária –que encena críticas a Israel, ao governo palestino e ao conservadorismo da sociedade local, além de autores como Shakespeare, George Orwell e Anton Tchekhov– é alto. Em abril de 2011, o ator e diretor israelense Juliano Mer-Khamis, fundador do grupo, foi morto perto dali.

NEM NA MÃE

O autor do crime nunca foi descoberto. Mas as teorias abundam. Teriam sido líderes do campo, diante de rumores de orgias nos ensaios? Ou por outro fundador do teatro, o ex-líder da milícia Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa Zakaria Zubeidi, com quem tinha questões financeiras? Ou por agentes de Israel e da Autoridade Palestina?

"Sempre fizemos trabalhos provocativos e acabamos criando inimigos", diz o ativista de direitos humanos Jonatan Stanczak, 37, outro cofundador do teatro e, hoje, seu diretor-executivo.

"O assassinato aumentou a sensação de insegurança num lugar onde as pessoas não confiam nem na mãe."

Como Mer-Khamis, de mãe judia e pai árabe-cristão, Stanczak é judeu. Nasceu na Suécia e foi enfermeiro até se mudar para Jenin, em 2006. Em 2009, voltou ao país natal para liderar ações pró-palestinos. Com a morte de Mer-Khamis, assumiu o teatro.

"Foi o caos. Israel prendeu meia equipe, alegando investigar o assassinato. Fui algemado e mantido sob a mira de uma arma", diz Stanczak.

O status do teatro no campo de refugiados (um emaranhado de ruelas, mas com pavimentação e prédios de cimento) também sofreu.

Críticas à sociedade palestina são mal vistas. Já houve pressão pelo fechamento, com apoio do Comitê Popular de Jenin, espécie de governo miliciano paralelo. "É assim que a sociedade de Jenin funciona. Se você não gosta de algo, ameaça, atira, destrói", diz Stanczak.

VERBAS DE FORA

Ao lado do Teatro da Liberdade, em Jenin (Cisjordânia), um vizinho mantém o rádio em volume alto durante ensaios e peças.

"O que podemos fazer?", pergunta o atual diretor artístico, Nabil al- Raee, 37, tentando ignorar o som. "Temos uma história de amor e ódio aqui."

Daniela Kresch
JENIN - Nabil Al- Raee, diretor artistico do Teatro da Liberdade de Jenin, Cisjordania (Foto: Daniela Kresch) ****EXCLUSIVO FOLHA**** ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Nabil al-Raee, diretor artístico do teatro, na sede do grupo em Jenin

O orçamento do teatro, US$ 450 mil anuais (R$ 1,6 milhão), mantém o local e os salários dos 18 empregados. A verba vem de doações: ONU, agências estrangeiras, ONGs pró-palestinos e crowdfunding.

O teatro também arrecada com encenações no exterior. Em 2015, por exemplo, parte dos atores foi à Índia atuar com o grupo Jana Natya Manch. "Há uma tradição na Índia de usar arte como resistência. Temos muito a aprender com eles", diz o diretor-executivo, Jonatan Stanczak.

O Teatro da Liberdade integra o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Israel (BDS). Al-Raee diz acreditar na luta armada contra Israel, mas Stanczak afirma que essa não é a posição do teatro: "Preferimos a mudança pela cultura".


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