Folha de S. Paulo


Um ano após terremoto no Nepal, milhares continuam sem teto

Niranjan Shrestha/Associated Press
Praça Durbar, em Katmandu (Nepal), logo após terremoto de 25 de abril de 2015 e em março de 2016
Praça Durbar, em Katmandu (Nepal), logo após terremoto de 25 de abril de 2015 e em março de 2016
Niranjan Shrestha/Associated Press
Praça Durbar, em Katmandu (Nepal), logo após terremoto de 25 de abril de 2015 e em março de 2016
Praça Durbar, em Katmandu (Nepal), logo após terremoto de 25 de abril de 2015 e em março de 2016

A violência do terremoto de 7,8 graus destroçou inúmeras cidades e vilarejos na região central do Nepal em 25 de abril de 2015. Um ano mais tarde, o cenário ali ainda é de escombros e destruição.

O país pouco avançou na reconstrução de centenas de milhares de casas, escolas e prédios governamentais, além de cerca de 600 estruturas históricas, incluindo tempos hindus e budistas, monumentos e palácios.

Quase 1 milhão de crianças continuam sem escola onde estudar. Milhões de moradores da zona rural foram obrigados a passar o inverno em barracas frágeis e improvisados casebres de zinco erguidos nas montanhas e planícies.

Nenhum projeto foi aprovado pelo órgão de reconstrução do governo até agora. Alguns cidadãos começaram a trabalhar por conta própria, mas a maioria decidiu aguardar. Muitos têm medo de infringir as novas normas de construção que foram prometidas ou ainda têm esperança de receber dinheiro do governo para as obras.

Muitas pessoas ainda estão morando em fileiras de abrigos temporários feitos de madeira recuperada com tetos de folhas de zinco. Esses abrigos provavelmente serão sua única proteção quando a estação das chuvas voltar, em dois meses.

"Este barraco está sendo nossa casa há um ano, e tudo indica que ainda vamos passar muito tempo aqui. A gente só ouve que o governo vai nos dar dinheiro para reconstruir nossas casas, mas quando é que isso vai acontecer? Nossos filhos estão adoecendo e nós não temos dinheiro, emprego nem governo que venha nos socorrer", queixou-se o lavrador Keshar Narayan, que divide com oito parentes um barraco de zinco na periferia de Katmandu.

PROMESSAS

O governo não tardou a prometer ajuda após o terremoto de 25 de abril de 2015, que deixou quase 9.000 mortos. Um ano depois, porém, poucas famílias do distrito de Dolkha já tinham começado a receber compensação financeira.

Cada família recebeu 50 mil rúpias (cerca de R$1.700), a primeira prestação do montante de 200 mil rúpias que o governo prometeu aos que perderam suas casas. Dolkha foi um dos distritos mais devastados pelo terremoto, além de ter sido o epicentro de outro grande abalo que sacudiu a área em 12 de maio.

Enquanto a população espera por ajuda, até rezar pode ser arriscado. Em um país profundamente religioso, muitas pessoas buscam conforto espiritual nos templos de pedra que o terremoto entortou e que agora, em alguns casos, estão apoiados apenas sobre vigas de madeira.

"Cada vez que venho ao templo orar, não sei se vou sair inteira. Arriscamos a vida para fazer nossas orações", disse Shanti Shrestha, em Katmandu, segurando sua oferenda, um bastão de incenso e uma flor. "Estamos todos revoltados. Um ano se passou e não foi feito nada."

A falta de avanços não se deve à falta de dinheiro. Diante de uma conta de reconstrução estimada em US$ 6,6 bilhões, o Nepal já recebeu US$ 4,1 bilhões em doações.

Editoria de arte/Folhapress

Autoridades e humanitaristas dizem que o problema é a burocracia e o mal-estar do governo. Alguns doadores já desistiram, frustrados.

"Acabamos de perder um doador que queria dar US$ 400 mil", contou o representante da Unesco no Nepal, Christian Manhart. "Parece que tudo está bloqueado pelos procedimentos muito demorados exigidos pelo governo."

A própria Unesco já tem US$ 1,8 milhão em seu orçamento reservado para o Nepal e que ainda aguarda ser gasto.

Ao mesmo tempo em que enfrenta meses de protestos étnicos que fizeram mais de 50 mortos, o governo tem estado envolto em disputas políticas internas. Desde o terremoto, houve uma mudança de governo e foi adotada uma nova Constituição que levou sete anos para ser redigida.

Foram precisos nove meses apenas para o Nepal criar um departamento responsável pela reconstrução após o terremoto. No entanto, ainda não há diretrizes que definam como a tarefa deve ser empreendida. Também não está claro quais edifícios deverão receber recursos para reconstrução.

RECONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO

Para Suresh Suras Shrestha, diretor da seção de conservação mundial do Departamento governamental de Arqueologia, encarregado dos monumentos e sítios históricos, outro problema é uma lei nacional que define que as licitações públicas tenham que ser vencidas por quem oferece os custos mais baixos. Quem o faz pode não ter o conhecimento ou a habilidade para reconstruir estruturas que datam do século 5º ou 6º.

"Quem for reconstruir nossos monumentos precisa obedecer procedimentos e normas", disse Shrestha.

O Departamento de Arqueologia defendeu seus esforços, observando que seus empregados reforçaram algumas construções que não foram muito danificadas. Além disso, o Departamento abriu licitações públicas para 39 obras e espera a liberação de US$ 20 milhões para a primeira fase do trabalho, assim que os contratos ficarem prontos. Não há indicação clara de quando isso pode acontecer.

A restauração de todos os monumentos está prevista para custar cerca de US$ 200 milhões.

Assista

"Os políticos não se importam com nossos templos. Se o rei ainda estivesse no poder, esses templos e palácios já estariam prontos", comentou o sacerdote hindu Ram Singh, aludindo aos monarcas que atuaram como guardiões dos monumentos nepaleses até a monarquia ser abolida, em 2008.

Pilhas de tijolos vermelhos caídos ao chão são tudo o que restou do Kastamandap, de quatro andares, um templo do século 10 de onde veio o nome da capital, Katmandu.

Logo ao leste das ruínas, centenas de fiéis ainda visitam o templo-palácio da Kumari, menina adorada por hindus e budistas como deusa viva. Mas as paredes de tijolos foram escoradas precariamente por dezenas de vigas de madeira. A Kumari, que ainda vive no local, é uma entre dezenas de meninas que nos últimos quatro séculos tiveram essa honra; cada uma delas se afasta quando chega à puberdade.

Tijolos, pedras e tábuas quebradas colhidos dos escombros deixados pelo desabamento do palácio do século 10 na praça Durbar, em Katmandu, foram guardados e assim ficarão até que especialistas arquitetônicos possam classificá-los e colocá-los de volta em seus lugares. Nada foi feito ainda para consertar o palácio semidestruído da cidade medieval de Bhaktapur, a leste da capital.

Muitos dos pequenos templos, estupas e mosteiros budistas que cercam o santuário de Swayambhunath, do século 5, estão em ruínas. O lugar também é conhecido como "santuário dos macacos" devido aos milhares de macacos que se congregam ali, na periferia noroeste de Katmandu. Uma das estupas do santuário, Tashi Golma, ainda está coberta de arame quadriculado e folhas de zinco, para protegê-la contra furtos e impedir que deteriore ainda mais.

No Nepal, onde a maioria das pessoas é hindu, esses monumentos e templos são importantes por razões culturais, religiosas e históricas. As pessoas visitam os templos regulamente, inclusive em festas religiosas, casamentos e cerimônias de maioridade.

Cansadas de esperar pela ajuda do governo, algumas comunidades e autoridades locais estão fazendo o que podem por conta própria. Moradores de Bhaktapur já estão reerguendo o templo do deus hindu Vishnu construído no século 17, usando mão-de-obra e recursos de voluntários. O funcionário local do departamento de patrimônio histórico, Ram Govind Shrestha, disse que ainda não se sabe quanto a obra vai custar. Mas as autoridades locais pretendem pedir doações e começar a cobrar pedágio dos turistas.

"É muito difícil ficar olhando para nosso patrimônio histórico danificado", disse. "Então resolvemos começar a reconstruir."

Tradução de CLARA ALLAIN


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