Folha de S. Paulo


Economia explica recuo da esquerda latino-americana, diz Michael Shifter

A definição de um segundo turno entre dois candidatos conservadores na eleição presidencial do Peru, no último domingo (10), foi interpretada como mais uma evidência de uma crise das esquerdas na América Latina.

O crepúsculo dessa linha política também poderia ser percebido nas manifestações contra o PT no Brasil, na eleição de Mauricio Macri na Argentina, no declínio do chavismo na Venezuela e na derrota de Evo Morales em referendo na Bolívia.

Para Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, think tank americano com foco em estudos relacionados à América Latina, entretanto, essa mudança não tem nada de ideológica.

Segundo Shifter, a transição acontece porque os cidadãos desses países estão buscando soluções pragmáticas para seus problemas, especialmente os econômicos. "A economia é mais importante", disse à Folha.

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Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, think tank americano com foco em estudos relacionados à América Latina
Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, think tank americano com foco em estudos relacionados à América Latina*

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

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Folha - Há um encolhimento das esquerdas na América Latina?
Michael Shifter - A esquerda latino-americana está com problemas. No geral, muitos desses governos passam por dificuldades econômicas.
Faltam recursos para sustentá-los no poder e, por isso, estão recuando. Além da questão financeira, há o fato de serem governos que estão no poder há muito tempo, e as pessoas querem mudança.

O senhor não acha que seja uma questão ideológica?
Não há evidências de mudança ideológica na América Latina, de que as pessoas estejam indo para a direita.

As populações locais buscam soluções pragmáticas para suas vidas. Elas sabem que a vida melhorou por um tempo durante governos de esquerda, que aproveitaram o boom das commodities. Mas as coisas mudaram.

Durante o auge dos governos de esquerda, as pessoas não haviam se tornado mais esquerdistas, elas viam que o país crescia e havia políticas sociais muito eficientes e comprometidas em diminuir a pobreza e a desigualdade.

Vivia-se melhor, e isso não tinha necessariamente a ver com alinhamento à direita ou à esquerda.

Os latino-americanos não estavam ligados à ideologia de esquerda desses governos?
Não é que não haja nenhum elemento ideológico, mas é primordialmente uma questão econômica.

As pessoas acreditaram nessas políticas de esquerda e tinham um interesse maior em justiça social, é verdade. Mas a razão pela qual esses governos ficaram no poder por tanto tempo é o fato de que o ambiente era benigno e favorável à economia. Eles surfaram nessa onda, e muita gente foi atraída por isso.

Agora há um senso de exaustão desses governos. As pessoas podem até achar que melhoraram de patamar durante esses governos, mas é natural querer mudanças em um sistema democrático.

Na época das eleições no Brasil, o senhor disse que não havia diferenças de projeto político entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Agora a presidente corre o risco de sofrer o impeachment e acusa a oposição de promover um golpe de direita. Como vê o que acontece no Brasil atualmente?
É fácil perceber que o debate está polarizado, mas não sei se necessariamente em linhas ideológicas.

Se colocarmos quem defende o governo e os que querem o impeachment em uma mesma sala e retirarmos do debate o sentimento contra Dilma e dramas pessoais, acho que haverá alinhamentos bem parecidos em relação a princípios políticos.

Haveria diferenças, claro, mas acho que não seria uma polarização ideológica. Não há uma separação tão clara entre direita e esquerda.

A esquerda está perdendo espaço no continente, mas a direita também está se transformando para se adaptar aos interesses dos cidadãos. Em qualquer país da América Latina, governos que rompem com a política de esquerda não podem simplesmente mudar o sistema para orientar a política de acordo com o que os mercados querem. As fórmulas conservadoras dos anos 1990 não funcionam na América Latina atual. O continente mudou, e é preciso reconhecer isso. Não se pode eliminar o que foi feito pelos governos de esquerda. Os avanços sociais precisam ser mantidos.

A América Latina não pareceu ser uma prioridade na política externa de Barack Obama. Que influência os EUA tiveram nesse enfraquecimento da esquerda latina?
Os EUA tiveram muito pouca influência sobre a América Latina. O que houve é produto de circunstâncias nacionais de cada país.

A reaproximação com Cuba foi um grande passo do governo de Obama na relação com o continente. Como acha que ela afeta as esquerdas da América Latina?
A reaproximação entre os EUA e Cuba tirou o ponto de equilíbrio da esquerda do continente. É difícil manter a retórica anti-imperialista quando Obama e Raúl Castro estão se encontrando para conversar e mantendo uma relação amigável.

Não dá para continuar jogando a responsabilidade sempre nos EUA quando Havana e Washington se aproximam. Tanto é assim que há esquerdistas latinos alegando que a melhor coisa para a esquerda latina seria uma vitória de Donald Trump.

Como seria a relação dos EUA com o continente em caso de vitória de Trump nas eleições?
Isso pode ser um problema para a relação com o México, que já está bem ofendido com a campanha dele. Saber o que ele faria sobre o resto do continente é impossível.

A campanha de Trump é imprevisível e inconsistente, o que é preocupante.

Qual a sua opinião a respeito do segundo turno nas eleições do Peru?
Ainda faltam dois meses para a eleição. Dois meses no Peru é como um século em outros países. Muito pode acontecer entre agora e junho. É como no Brasil atual, as coisas mudam muito rapidamente, e o ambiente político é muito volátil. O processo da eleição foi selvagem, por mais que tenha acabado como muitos previam desde o começo. As campanhas têm altos e baixos, e muito pode acontecer neste segundo turno.

Keiko foi melhor de que a maior das pessoas esperava. Ela não apenas conseguiu quase 40% dos votos, como conseguiu a maioria dos votos no Congresso, o que muito pouca gente esperava. Ela está em uma posição muito vantajosa, e acho que tem uma chance maior de ser a próxima presidente do Peru de que Pedro Pablo Kuczynski [conhecido como PPK].

PPK ainda tem chances?
Certamente não acho que PPK está descartado, entretanto. Se ele conseguir embalar sua campanha, pode ainda vencer. Ele precisa incentivar o voto anti-Fujimori e convencer os eleitores de que tem prepcuações com as questões sociais do Peru.

Keiko tem que ser considerada favorita, tem a vantagem de ter uma estrutura partidária mais forte de que a dele, além de contato com bases eleitorais, mas se PPK fizer uma boa campanha, pode surpreender.

O problema é que em 2011 PPK apoiou Keiko, então vai ser difícil ele convencer os eleitores de que é o oposto de Fujimori.

O que mudaria no Peru com a vitória de um ou do outro?
Os dois têm postura pró-mercado, e por isso a economia respondeu muito bem ao resultado do primeiro turno. Neste sentido, eles são muito parecidos.

Keiko, obviamente, tem o legado do seu pai, o que representaria um background questionável, lembrando dos problemas de direitos humanos e corrupção sob seu pai. Não é possível dizer que ela vai fazer igual, mas a associação é natural.

PPK tem uma reputação mais limpa, é visto como mais honesto.

Por outro lado, Keiko tem mais apelo popular. PPK é mais elitista, ligado à cosmopolita Lima, enquanto Keiko tem ligação com as periferias e o resto do país. Ela tem uma proposta social mais forte, e é mais bem aceita pela parte da população que pensa em sua própria situação e não em termos de ideologia política.

Outro tema importante é a questão da segurança, que não costumava ser uma problema forte no Peru. As pesquisas mostram que a criminalidade é uma das principais preocupações dos peruanos, e Keiko vai tentar capitalizar sobre isso, mostrando que seu pai manteve a ordem no país. Não é o ponto forte de PPK, que vai focar na economia.

Uma coisa que seria muito diferente entre os dois, e que é um forte argumento a favor de PPK, é o fato de que Keiko vai ter maioria no Congresso e que portanto, caso seja eleita, ela vai poder fazer o que quiser, pois vai ter carta branca do legislativo. Isso gera preocupação para muitos peruanos, pois parece que não haveria limites para seu governo. Com PPK na Presidência haveria maior equilibrio, e ele vai defender isso em sua campanha.

De todo modo, podemos considerar que Keiko foi a grande vitoriosa no primeiro turno e que a esquerda perdeu força?
Acho que o caso do Peru é diferente em relação ao encolhimento das esquerdas. Verónika Mendoza veio do nada e quase passou ao segundo turno. Esta eleição do Peru mostrou que o país agora tem uma esquerda, que nunca teve. Ollanta Humala não era esquerda de verdade. A grande vencedora dessa eleição foi Mendoza, mesmo que ela não tenha passado ao segundo turno. Ela foi muito bem e vai capitalizar em cima disso no futuro. O Peru foge desse padrão de recuo da esquerda do continente.


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