Folha de S. Paulo


Aeroporto construído por nazistas abriga refugiados na Alemanha

O pé-direito de 16 metros não deixa dúvidas de que o local não foi feito para ser uma moradia. Mas em quatro dos sete hangares do antigo aeroporto de Tempelhof, concebido por nazistas nos anos 1930 em uma área de quase 4 km² na região central de Berlim, vivem hoje 1.586 refugiados.

Inaugurado em outubro, o maior abrigo da capital alemã funciona como uma pequena cidade, mas o fato de ocupar uma construção tão simbólica faz da relação com a cidade do lado de fora algo ainda não muito bem resolvido.

Os refugiados moram em quartos improvisados com paredes de biombos, sem cobertura, onde dormem de seis a oito pessoas. A estrutura foi montada para não interferir na arquitetura do terminal, que é patrimônio histórico.

A tubulação de água para as cerca de 30 cabines por hangar que funcionam como banheiro também teve de ser instalada externamente, sem quebrar paredes.

RAIO-X - O abrigo de refugiados de Tempelhof é o maior de Berlim*

Mesmo num ambiente assim, os moradores fazem questão de agradecer por meio de inscrições e desenhos nas paredes dos quartos. "Ich bin Yesidi, ich liebe Deutschland" (Sou yazidi, amo a Alemanha), diz uma mensagem, em referência à minoria perseguida pelo Estado Islâmico no Iraque.

Em outro biombo, a bandeira alemã foi pintada com as cores se unindo às do Afeganistão, país de origem de 27% dos refugiados de Tempelhof –o maior grupo é de sírios (31%).

"Serei sempre grata ao que estão fazendo por nós", diz a afegã Shah Fayizie, 43, há quatro meses no abrigo. Ela perdeu o marido em um ataque a bomba da facção extremista Taleban. Decidiu fugir com os sete filhos em busca de abrigo na Europa.

"Na Turquia, pegamos um barco com 72 pessoas para a Grécia. O bote afundou, mas a Guarda Costeira nos resgatou, e todos da nossa família sobrevivemos", afirma o filho mais velho, Zaer, 19.

Nascido em Aleppo, o sírio Sami Akil, 26, também pegou um barco superlotado para chegar à Grécia e depois atravessar o sul da Europa até a Alemanha. Em Tempelhof há seis meses, quer ficar em Berlim, onde já vivem dois amigos também refugiados.

"Pretendo aprender alemão e trabalhar", afirma Akil, que recebe do abrigo € 135 mensais (cerca de R$ 550), assim como cada morador.

Tempelhof tornou-se um abrigo às pressas, quando a política de "braços abertos" da chanceler Angela Merkel fez o fluxo na fronteira chegar a até 800 refugiados por dia.

"Ônibus lotados eram mandados para cá, e tínhamos de achar um lugar grande o suficiente para essas pessoas", diz Sascha Langenbach, porta-voz da divisão do Senado de Berlim para Saúde e Assistência Social, que supervisiona os abrigos.

POLÊMICA

O uso de Tempelhof, porém, sempre foi tema sensível para os berlinenses. Após a Segunda Guerra Mundial, o aeroporto serviu para aviões americanos trazerem alimentos e outros bens. Após a reunificação, o terminal passou à aviação civil. Sua desativação ocorreu em 2008, e a área das pistas virou um parque.

O governo tinha planos de adaptar o terminal para construir até 4.700 moradias, mas a proposta foi rejeitada em 2014 por um referendo.

À medida que os refugiados chegavam, integrantes do movimento 100% Tempelhofer Feld ("Campo de Tempelhof"), que viabilizaram o referendo, questionaram a medida.

A polêmica se agravou em janeiro, quando o Senado aprovou uma lei, alegando emergência, segundo a qual Tempelhof será um abrigo até no máximo dezembro de 2019 e poderá receber até 7.000 refugiados –no auge do fluxo migratório, acolheu 2.750.

Mareike Witt, uma das líderes do 100% Tempelhofer Feld, diz que a mudança da lei foi feita sem discussão com a sociedade. "Criaram um local desumano e semelhante a um gueto", afirma.

Para ela, não há integração entre refugiados e frequentadores do parque. "Não entendo por que não põem um portão na cerca [que separa o terminal da área verde] para servir de acesso aos refugiados."

Não há restrição para os moradores do abrigo saírem à rua, mas frequentadores dizem que é raro vê-los circulando no parque.

"Algumas vezes os refugiados se aproximam da cerca, e as pessoas que estão passeando param, acenam", afirma a artista plástica Cornelia Schmidt-Bleek, 52, vizinha de Tempelhof. "Não é exatamente uma convivência ideal."


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