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Crise política na América Latina vem de maturidade social, diz analista

AP Photo/Rodrigo Abd
Bandeira com a mensagem
Bandeira com a mensagem "Perigo" e a foto de Keiko Fujimori é queimada em protesto em Lima

Há uma crise de representatividade na América Latina causada pelo amadurecimento das sociedades, hoje mais alertas e indignadas contra a corrupção e a antigas formas de atuação de partidos tradicionais.

Isso explica, para o jornalista Gustavo Gorriti, 67, recentes acontecimentos como as manifestações anti-corrupção no Brasil, a eleição de um representante da "nova política" como Mauricio Macri na Argentina, o declínio do chavismo na Venezuela e a ascensão de uma candidata novata como Verónika Mendoza no Peru, cujas chances de chegar ao segundo turno vêm crescendo, segundo principais institutos de pesquisa.

Sequestrado pelo Exército durante a ditadura fujimorista e autor do livro "Sendero", Gorriti é o principal jornalista investigativo do Peru. Hoje, é diretor do IDL-Reporteros, publicação digital que participou do projeto dos "Panamá Papers" e investiga o envolvimento do presidente peruano Ollanta Humala no caso Lava Jato.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista que Gorriti deu à Folha, em seu escritório, em Lima.

*

Folha - Por que acha que a Lava Jato terá consequências na América Latina?

Gustavo Gorriti - Porque creio que há um clima de respaldo social nos outros países parecido ao que há no Brasil. E, se há respaldo social, iniciativas como essa dos juízes de Curitiba podem servir de referência.

Apenas acho que, nos outros países, quem terá de liderar essas denúncias é o jornalismo investigativo. E as promotorias terão de ir atrás e investigar, porque haverá mais pressão social.

Para mim está claríssimo que o modus operandi, que a metodologia que empregaram as empreiteiras no Brasil é exatamente a mesma que se usa aqui e em outros países. Nunca estivemos tão perto de descobrir como operam essas estruturas no Peru, na Venezuela, no Panamá e em outros países.

A Lava Jato pode passar a ser o melhor produto de exportação do Brasil e promover uma mudança duradoura na democracia na América Latina.

Mas para haver essa contaminação positiva, será necessária vontade política. Na Argentina, por exemplo, o presidente Macri falava, na campanha, na criação da Lei do Arrependido (para delações premiadas). Agora, começam a surgir denúncias contra ele, e passou a hesitar em implementar isso.

Não acho essencial aprovar leis, mas sim que a sociedade esteja mais alerta. Entre o Brasil de Collor e o Brasil de hoje há uma diferença abismal no amadurecimento da sociedade.

O mesmo está passando nos outros países, e a Argentina é um deles. Por isso, insisto, quem deve liderar as denúncias no resto do continente é o jornalismo, e a Justiça, desta vez, terá de investigar, porque haverá pressão social.

Você acha que recentes resultados eleitorais, como os de Argentina e Venezuela, mostram uma mudança ideológica na região ou é reação ao sistema representativo?

Vários analistas interpretaram esses resultados recentes como o fim da esquerda. Para mim, é difícil pensar no governo da Venezuela ou no kirchnerismo como esquerda. Ambos foram cleptocracias.

A questão é que os economistas utilizam de forma incorreta o termo "populista" para designar demagogia econômica. Então ficaram associados à esquerda, de forma equivocada, a ideia de gastos excessivos e de falta de eficiência. Portanto estão contentes com um suposto giro da região à direita.

Mas eu não vejo um desejo generalizado de políticas direitistas por parte da população, mas sim o amadurecimento da ideia de que as pessoas querem se sentir melhor representadas, que seu voto valha, que sejam menos enganadas, e de que é necessário ter um bom governo.

Como vem detectando essa mudança no Peru?

Aqui houve uma reação forte dos políticos tradicionais contra a candidatura de Julio Guzmán, um tecnocrata independente que vinha de fora do sistema, construiu bem seu aparato de campanha e chegou ao segundo lugar nas pesquisas.

Houve muita pressão para que o Tribunal Nacional de Eleições [o TSE peruano] encontrasse um modo de tira-lo da disputa. E o fizeram, por meio da acusação de uma pequena irregularidade na inscrição de sua candidatura, que a outros candidatos seria desculpada.

Políticos do velho "establishment", como Alan García (ex-presidente e atual candidato), Pedro Pablo Kuczynski (ex-ministro e atual candidato) saíram a pedir que a lei fosse aplicada de forma implacável contra ele. E assim, teve de sair da disputa.

Depois, erros parecidos ou piores que o de Guzmán foram detectados em candidaturas como as de García e de Keiko Fujimori, mas aí o JNE não fez nada para impugna-los.

O secretario-geral da OEA, Luis Almagro, disse que isso caracterizava o processo peruano como "semi-democrático", o senhor concorda?

Sim, Almagro se posicionou de forma impecável.

Nesse sentido, a ascensão de Verónika Mendoza está sendo um susto para esse grupo, não?

Totalmente, achavam que, ao sacar Guzmán, resolveriam a coisa entre eles. Que a sociedade até poderia reclamar um pouco da impugnação de Guzmán, mas que depois acataria e votaria nos candidatos de sempre.

Mas o resultado está sendo outro, justamente porque a sociedade está mudando e não está mais tão resignada para aceitar esse tipo de manobra.

Isso explica a ascensão da candidatura de Mendoza. Isso explica também a grande participação das pessoas na marcha anti-fujimorista da última terça-feira (5).

As pessoas foram às ruas não apenas porque não querem o fujimorismo de volta, foram por não estarem mais de acordo a essa forma antiga de fazer política.

Se Mendoza de fato for para o segundo turno contra Keiko, o Peru estará vivendo também um processo de mudança muito importante.

Isso o surpreende?

Veja, o Peru é a nação mais conservadora de toda América do Sul, historicamente. Fomos a sede do último vice-reinado espanhol. Daqui se tramou a reação colonial espanhola contra as insurreições por independência nos outros países.

Daqui os espanhóis partiram para tentar conter a revolução de independência argentina. Também somos os mais conservadores com relação ao papel da Igreja na política, temos uma Igreja muito conservadora e atuante.

Mas também somos um país de excepcionalidades. Nos anos 1970, por exemplo, quando a região estava cheia de ditaduras de direita, nós tínhamos uma ditadura militar de esquerda —a do general Velasco Alvarado (1968-1975).

Portanto, não me surpreendo se, agora, o continente passe a eleger vários políticos de direita e aqui tenhamos uma presidente de esquerda, de uma esquerda nova, responsável, não ao estilo chavista.


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