Folha de S. Paulo


Justiça ronda dez líderes latino-americanos

Sobre dez presidentes e últimos ex-presidentes a ocupar o cargo em oito países da América Latina paira hoje a sombra de irregularidades. Em parte dos casos, os envolvidos são parentes próximos. Em outros, a ligação é direta.

As acusações ou suspeitas são tão diversas quanto tráfico de influência, lavagem de dinheiro e homicídio. Em um ponto, contudo, os casos coincidem: o fato de haver investigação que não poupa o círculo mais próximo ao poder nestes países.

Sombra da ilegalidade

"Há vários fatores comuns que explicam essas investigações. O primeiro deles é que você tem uma classe média que cresceu muito nos últimos 20 anos no Brasil e no resto da região, e que já não se conforma com o 'rouba mas faz'", diz o especialista em governos latino-americanos do centro de estudos americano Council of the Americas, Brian Winter.

"Eles pagam impostos e querem uma qualidade de governança melhor."

A pressão popular é, para especialistas ouvidos pela Folha, um dos principais motores da ação cada vez mais incisiva de procuradores em países como o Brasil, a Guatemala e o Chile.

A edição de 2015 do respeitado relatório Latinobarômetro mostra que, na lista dos problemas mais importantes apontados pela população da América Latina, a corrupção aparece em quarto lugar, atrás da violência, do desemprego e da economia -mas à frente da educação, da saúde e da pobreza. No Brasil, a corrupção foi o principal problema para 22% dos entrevistados.

"A pressão e a falta de tolerância sobre a corrupção, especialmente em tempo de crise econômica, têm feito com que as instituições investigativas ganhem poder", afirma Matthew Taylor, do Council on Foreign Relations, coautor do livro "Corruption and Democracy in Brazil: The Struggle for Accountability" (Corrupção e Democracia no Brasil: a luta pela responsabilização).

Eduardo Anizelli - 4 mar. 2015/Folhapress
Lula chora durante fala em ato organizado pela militância do PT em São Paulo
Lula chora durante fala em ato organizado pela militância do PT em São Paulo, na sexta (4)

No episódio mais recente, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (2003-10) foi levado pela Polícia Federal na sexta (4) para depor sobre um possível beneficiamento no esquema de corrupção na Petrobras.

Ainda no Brasil, a presidente Dilma Rousseff é alvo de ações que buscam cassar seu mandato no Tribunal Superior Eleitoral por suposto uso da máquina pelo governo em sua campanha de 2014. Os dois negam as acusações.

SEMELHANÇAS

Para Winter, o caso que mais se assemelha às investigações no Brasil é o da Guatemala, onde Otto Pérez Molina começou a ser investigado enquanto ainda estava no poder por comandar uma rede na qual empresários pagavam propina para importar sem impostos. Molina renunciou à Presidência em setembro e foi detido no mesmo dia.

O caso do ex-presidente panamenho Ricardo Martinelli (2009-14), que é investigado, entre outros crimes, por corrupção em obras de hidrelétricas no país, contudo, é apontado por Taylor como mais próximo ao que acontece no Brasil hoje, pela suspeita de corrupção envolvendo empreiteiras. Martinelli deixou o Panamá dias antes de ser aberta a investigação.

Nas últimas semanas, outros casos envolvendo a Justiça voltaram os holofotes para presidentes e ex-presidentes da região. Na Bolívia, uma ex-namorada de Evo Morales foi detida por acusação de tráfico de influência em contratos que somam mais de US$ 500 milhões.

A oposição acusa Morales de ter favorecido Gabriela Zapata ao pô-la à frente do escritório boliviano de uma empresa chinesa que venceu licitações. O mandatário nega.

Na Colômbia, o ex-presidente Álvaro Uribe (2002-10) teve o nome exposto coma prisão do irmão, Santiago, suspeito de ajudar a formar um esquadrão da morte de extrema direita nos anos 90. Uribe acusa o governo atual de perseguição política.

"O fato de esses casos virem à tona é sintoma do melhor funcionamento da democracia", diz o argentino Adrián Albala, do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo.

Para ele, essa melhoria pode ser explicada, sobretudo, pelas décadas de ausência de interrupções à democracia.

"Estamos hoje no período mais longo de democracia dos países da região. O processo de consolidação da democracia e suas instituições não tinha como ocorrer no passado, com tanta intervenção."

Taylor concorda: "Em todos esses países, bem ou mal, você tem uma democracia há mais de 25 anos". "Essas novas democracias têm órgãos que foram se fortalecendo com uma geração nova de procuradores e juristas", diz.

PODER DA INFORMAÇÃO

Outro fator positivo para o fortalecimento da democracia, apontam os especialistas, é um maior acesso à informação pela população e seu menor controle pelo Estado.

"Torna-se ilusório pensar que vai ser possível controlar o que pode ou não ser publicado", destaca Albala.

As redes sociais, por sua vez, amplificam o clamor para que sejam esclarecidos os casos de corrupção. "E essa demanda já não pode ser ignorada", diz Winter.

Taylor, entretanto, ressalta a importância do jogo político como estopim de algumas investigações.

"Tendemos a pensar que a luta anticorrupção é uma luta do bem contra o mal, mas, na maioria dos casos, as primeiras revelações surgem por causa de divergências dentro da própria coalizão governista. O caso do mensalão, no Brasil, é clássico", lembra.

Para Taylor, porém, o fato de envolver uma perspectiva de ganho político de um grupo não desqualifica a investigação. "Tanto faz de onde surgiu a primeira delação ou informação. O que importa é que as instituições funcionem."


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