Desde domingo (21), voltaram a existir duas Bolívias. Após levar quase uma década para construir um consenso que lhe permitiu reeleger-se pela segunda vez com 61% dos votos, Evo Morales se vê obrigado a governar até 2019 (fim do atual mandato) um país novamente dividido.
Muitos analistas se apressarão em dizer que a vitória do "não" no referendo pela mudança na Constituição é mais um prego no caixão do chamado "bolivarianismo".
David Mercado - 22.fev.2016/Reuters | ||
Evo Morales fala a jornalistas no palácio presidencial, em La Paz, um dia após o referendo |
Mas o que se viu na Bolívia tem mais a ver com o desgaste da imagem de Morales e a perda da confiança por parte considerável de sua base de apoio político: a esquerda e os movimentos indígenas.
A desaceleração econômica da região ainda não produz efeitos negativos no dia a dia do país, que cresceu a uma média de 5% na última década e viu as taxas de pobreza e desemprego caírem.
Portanto, não há indício de que a opção pelo "não" seja um pedido de mudança na política econômica ou de redução do papel do Estado.
A real dificuldade de Morales é não saber lidar com as consequências negativas da não alternância de poder.
A principal delas é a corrupção, que vem se espalhando em setores estratégicos do governo, como o Fundo Indígena, acusado de destinar fortunas a obras fantasmas.
O exemplo mais recente, que atingiu o presidente, é a acusação de que ele tenha favorecido uma ex-namorada com um cargo de chefia de uma empresa chinesa a qual o governo confiou mais de US$ 500 milhões para obras.
Se na eleição de 2014 a oposição se fragmentou, o referendo de domingo possibilitou aos descontentes com Morales se juntarem ao redor de uma só proposta. Mas é equivocado pensar que constituem um plano alternativo monolítico de governo.
David Mercado/Reuters | ||
Equipe de centro de apuração de votos na capital, La Paz |
O voto no "não" reúne parte do empresariado assustado com a crise anunciada e setores de uma esquerda urbana que pede leis de igualdade de gêneros. Reúne dissidentes dos movimento indígenas e parte da elite branca que jamais aceitou um líder de origem aimará.
Nos últimos tempos, ancorado nos bons resultados nas urnas, Morales se mostrou mais autoritário, o que incomoda parte de seu eleitorado, sobretudo o progressista.
Na segunda (22), ao responder uma repórter que questionou o que ele faria se deixasse o governo, Morales disse que iria para seu sítio e ofereceu à jornalista um emprego de cozinheira.
Esse tipo de "piada" machista está longe de ser nova, e as líderes de movimentos feministas veem seu reflexo na ausência de medidas para promover uma sociedade mais igualitária, acabar com a violência doméstica (a Bolívia é campeã latino-americana nesse quesito) e debater sobre o aborto no Congresso.
Resta saber como se comportarão essas forças políticas no novo cenário.
Que Morales sozinho tenha o apoio de 48,66% da população (segundo 99,37% dos votos apurados até a conclusão desta edição), diante da oposição fragmentada, não será um dado menor. Sua popularidade segue alta e abre espaço para um sucessor.
Quem terá mais trabalho será a oposição, que, nas últimas três eleições, não conseguiu se unir sob uma mesma candidatura. Agora, terá estímulo extra do referendo.