Folha de S. Paulo


Esconderijo das Farc na selva da Colômbia vive expectativa de paz

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O líder rebelde conhecido como Juan Pablo carrega nas mãos um novo fuzil de assalto com mira telescópica e no coração um sentimento de tristeza.

Como comandante da 36ª frente das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), uma das unidades mais ativas em meio século de derramamento de sangue, o guerreiro barrigudo passou 25 anos tramando emboscadas e montando minas terrestres, mas nunca foi ao cinema, dirigiu um carro ou comeu num restaurante.

Agora a paz está ao seu alcance, com as conversações entre os guerrilheiros e o governo se aproximando da conclusão, em Cuba, e, pela primeira vez, o guerrilheiro de 41 anos está pensando em um futuro fora deste esconderijo na selva. Seu sonho seria voltar ao povoado pobre que deixou quando era adolescente e candidatar-se a prefeito.

Mas a transição para a vida civil acontecerá sem sua namorada e companheira de armas, morta há seis meses em uma operação do Exército. A perda dela veio ressaltar os danos que ainda continuam a ser feitos pelo último grande conflito guerrilheiro da América Latina, mesmo no momento em que se aproxima do fim.

"Esta guerra vai terminar sem vencedores ou vencidos, mas com sofrimento de sobra dos dois lados", disse Juan Pablo, que é filho de um vendedor de rua.

"Dizer que chegamos à mesa de negociações já derrotados é falso. Eles nos desferiram alguns golpes pesados, sim, mas 51 anos de guerra contra um inimigo que tinha o respaldo do Exército mais poderoso do mundo (o dos EUA) não nos acovardaram, porque as injustiças que nos levaram a pegar em armas continuam presentes."

Esse misto de orgulho e receio quanto ao futuro é comum entre os cerca de 7.000 combatentes das Farc, muitos dos quais, como Juan Pablo, foram criados pobres, na zona rural, e têm dificuldade em imaginar a vida fora das fileiras altamente estruturadas da guerrilha.

No início de janeiro a Associated Press fez uma rara visita de três dias a um acampamento secreto das Farc no Estado de Antioquia para ver como a insurgência esquerdista mais antiga da região está se preparando para uma paz que parece mais próxima do que nunca.

Jornalistas da AP foram orientados a ir até um ponto de encontro remoto e então escoltados a um local na selva, numa caminhada que levou horas. As Farc insistiram que a localização do acampamento não fosse revelado, para proteger a vida de seus combatentes.

Décadas de enfrentamentos entre guerrilheiros, paramilitares de direita e as Forças Armadas já deixaram mais de 220 mil mortos, 40 mil desaparecidos e mais de 5 milhões de pessoas expulsas de suas casas —a maior população deslocada de qualquer país, tirando a Síria.

Mas, desde que o presidente Juan Manuel Santos viajou a Cuba, em setembro, e trocou um aperto de mãos com o comandante das Farc, as duas partes sentem confiança suficiente para prever que um acordo final será fechado já em março.

Esta geração de guerrilheiros das Farc será a primeira a abrir mão do objetivo declarado da organização —depor o governo— para, em vez disso, lutar por seus ideais nas urnas.

SEM SOM DE TIROS

No acampamento improvisado que abriga temporariamente soldados rasos, quatro comandantes e dois cães, o dia começa por volta das 4h30.

Com a lua ainda brilhando no horizonte, a selva ganha vida com o som de panelas de metal batendo, enquanto é preparado o desjejum. Ao mesmo tempo, a chuva cai sobre as folhagens gigantes e ouvem-se pessoas andando de botas de borracha na lama.

Graças ao cessar-fogo unilateral declarado pelas Farc, faz meses desde que se ouviram tiros neste canto remoto dos Andes, onde os rebeldes dividem a selva densa com cobras venenosas, 20 tipos de sapos exóticos e a única espécie de urso que existe na América do Sul.

Mas os guerrilheiros não dão sinais de abaixar a guarda, depois de uma ofensiva governamental que já dura uma década e que reduziu suas tropas em mais da metade.

Eles dormem armados, proíbem qualquer conversa à noite e usam codinomes para proteger suas identidades. O contato por rádio com outras unidades acontece uma vez por dia e em código; missivas mais longas são salvas em pendrives e transportadas através de uma rede de mensageiros.

Ainda está presente na cabeça de todos a morte, em 2011, do comandante das Farc conhecido como Alfonso Cano, perseguido e morto pelo Exército colombiano graças à interceptação de uma conversa ao celular.

Os cuidados tomados pelos guerrilheiros destacam um dos problemas mais espinhosos que os negociadores ainda precisam resolver: como e sob os auspícios de quem as Farc vão entregar suas armas, quando a experiência já ensinou aos rebeldes que a política pode ser tão perigosa quanto a guerra.

Os guerrilheiros recordam perfeitamente que, durante as negociações de paz dos anos 1980 que acabaram fracassando, as Farc criaram um partido conhecido como União Patriótica para ser seu braço político. Em poucos anos, mais de 3.000 ativistas de esquerda, simpatizantes dos rebeldes e dois candidatos presidenciais foram mortos a tiros por paramilitares, muitas vezes em conluio com as forças de segurança do Estado.

O que aconteceu virou uma história cautelar em um país atingido pela violência política desde sua independência da Espanha.

"Aprendemos muito com essa experiência, mas quem diz que a única maneira de fazer política é no Congresso?", perguntou Leonidas, outro comandante. "Uma coisa está clara: nesta nova fase não vamos nos desmobilizar. Vamos nos mobilizar" politicamente.

Leonidas disse que o ativismo vai envolver principalmente trabalho em prol dos pobres da zona rural. É um reflexo das origens das Farc, nos anos 1960, como força de autodefesa formada para proteger das forças militares as chamadas "repúblicas independentes" comandadas por camponeses.

A paz pode estar no ar, mas é difícil abrir mão do discurso do conflito.

Os rebeldes chamam seus superiores de "camaradas". Desertores, para eles, são "traidores". Discursos sobre "oligarcas" e sobre o "império" dos EUA que estariam oprimindo a classe trabalhadora colombiana são repetidos diariamente.

Esqueça romances baratos ou clássicos literários —os únicos materiais de leitura disponíveis no acampamento incluem uma coletânea de discursos de Fidel Castro, biografias do revolucionário argentino Ernesto "Che" Guevara e relatos jornalísticos sobre grilagem de terras por paramilitares. Juan Pablo, por exemplo, é capaz de citar trechos inteiros dos discursos de Fidel.

Mas, se as Farc podem dar a impressão de estar presas numa máquina do tempo ideológica, os guerrilheiros dizem que a organização os tirou da pobreza, os ensinou a ler, lhes deu uma "família" e um senso de pertencimento. Nas horas de bate-papo que tivemos durante a visita da AP, nenhum deles mostrou sinal evidente de insatisfação ou criticou o processo de paz.

Os guerrilheiros também tentam diminuir a importância do profundo envolvimento das Farc com as drogas, um comércio lucrativo que pode acabar dando um poderoso incentivo econômico para continuarem armados; seria o caso, especialmente, para os comandantes de nível médio.

Famílias que vivem nos vales remotos comandados pela 36ª Frente reconhecem que pagam um imposto de guerra para proteger suas plantações de coca, mas os rebeldes dizem que, se um acordo for fechado, ajudarão a desenvolver plantações alternativas.

Como gesto destinado a construir confiança, as Farc renunciaram aos sequestros feitos para obter resgates, dinheiro usado para financiar sua insurgência. E, embora haja abusos como recrutamento de menores e massacres de civis a serem julgados por tribunais especiais da paz, os rebeldes observam que grupos de defesa dos direitos humanos atribuem a maioria das mortes no conflito aos paramilitares.

ASSEMBLEIAS DE PAZ

Ao mesmo tempo em que o acampamento continua em ritmo de guerra, os guerrilheiros começaram a promover assembleias de paz, duas vezes por dia.

Num dia recente a primeira assembleia, antes do café da manhã, foi presidida por Yira Castro, comandante cujo codinome é uma homenagem a um célebre comunista colombiano. À sombra de uma árvore, ela leu em voz alta o subacordo de 63 páginas firmado recentemente em Havana.

Castro, que é uma espécie de mentora de outras guerrilheiras, passou boa parte dos últimos três anos nas negociações em Havana. Sua relativa sofisticação é visível em seu espanhol com sotaque cubano e em seu novo laptop laranja.

Uma pessoa que a ouviu atentamente foi Juliana, que chegou ao debate depois de abater um porco que alimentaria o acampamento por vários dias.

Como muitas outras pessoas, o caminho que ela seguiu para chegar às Farc se deveu tanto à ideologia política quanto a uma tragédia pessoal. Aos 16 anos, depois de ser violentada por seu padrasto, ela fugiu de sua família pobre e seguiu os rastros de um tio.

Juliana disse que, se não tivesse pegado em armas, teria gostado de estudar computação. Mas agora ela espera poder servir às Farc mesmo em tempos de paz. "Quero me preparar para entrar na política e levar adiante meu vínculo com a organização."

Em meio à vida espartana de uma guerrilheira, ela se permite um pequeno luxo feminino: batom cor-de-rosa. Seu companheiro, Alexis, falou do que considera ser a banalidade dos relacionamentos no resto do mundo.

"Aqui, nas Farc, nunca tocamos em dinheiro. Tudo nos é dado, desde os remédios aos cigarros. Por isso não existe dependência —ela não espera que eu a sustente", falou Alexis, segurando a mão de Juliana. "Entre nós dois a única coisa que existe é o amor."

A conversa acabou de repente quando um avião desconhecido sobrevoou a selva pela segunda vez, deixando todos com os nervos à flor da pele.

"A política é mais dura que a guerra", falou outro comandante, Anibal, deitado em sua rede.

"Um erro no campo de batalha você paga com sua vida, mas um erro no campo da política pode pôr uma organização inteira abaixo."

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ENTENDA O MEIO SÉCULO DE CONFLITO NA COLÔMBIA

Como começou

O assassinato do agitador populista Jorge Eliecer Gaitán, em 1948, levou a uma grande revolta política que ficou conhecida como "A Violência". Dezenas de milhares de pessoas morreram, e grupos de camponeses se uniram aos comunistas para se armarem.

Em 1964, um ataque militar ao seu acampamento principal levou à criação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ou Farc.

Os objetivos dos rebeldes

Embora as Farc fossem nominalmente marxistas quando fundadas, sua ideologia nunca foi claramente definida. A organização busca forçar a oligarquia conservadora a dividir o poder, priorizando a reforma agrária num país onde mais de 5 milhões de pessoas já foram expulsas à força de suas casas, principalmente por milícias de extrema direita a serviço de fazendeiros, empresários e narcotraficantes.

As Farc perderam popularidade quando, para financiar sua insurgência, passaram a recorrer aos sequestros, à extorsão e à cobrança de impostos sobre a produção de cocaína e o garimpo ilegal de ouro.

Envolvimento dos EUA

Em 2000, os Estados Unidos começaram a enviar à Colômbia bilhões de dólares para financiar esforços de combate às drogas e à insurgência. O chamado Plano Colômbia ajudou as forças de segurança a enfraquecer as Farc e matar vários de seus principais comandantes.

Custo em vidas humanas

Mais de 220 mil pessoas morreram desde 1958, em sua maioria civis. Muitas das mortes nas duas últimas décadas foram obra das milícias, que fizeram as pazes com o governo em 2003.

As Farc sequestraram fazendeiros, políticos e soldados, muitos dos quais passaram anos detidos em campos de prisão na selva. Entre seus reféns que ficaram presos estiveram a ex-candidata presidencial Ingrid Betancourt e três empreiteiros militares americanos, todos resgatados em 2008.

Esforços para chegar à paz

As negociações de paz de meados dos anos 1980 desabaram quando esquadrões da morte dizimaram pelo menos 3.000 aliados da ala política das Farc.

Outro esforço fracassou em 2002, quando os rebeldes sequestraram um jato comercial que levava um senador. As negociações atuais estão sendo realizadas em Havana desde 2012.

Pontos de concordância até agora

Os negociadores já chegaram a acordos sobre reforma agrária, sobre o combate ao narcotráfico, a participação política dos guerrilheiros e a punição dos responsáveis por crimes de guerra dos dois lados.

O que falta ser acordado

Como e sob os auspícios de quem as Farc vão se desarmar. O presidente Juan Manuel Santos quer submeter a um referendo nacional qualquer acordo que venha a ser fechado; as Farc querem que o acordo seja ratificado por uma convenção constitucional.

O ELN, um grupo guerrilheiro menor, não faz parte do processo de paz, mas está envolvido em discussões preliminares com o governo.

Tradução de CLARA ALLAIN


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