Folha de S. Paulo


EUA têm dificuldade para explicar lealdade à Arábia Saudita

A administração Obama enfrentou nesta semana a contradição fundamental presente em seu relacionamento cada vez mais tenso com a Arábia Saudita.

Por medo de enfraquecer a frágil liderança saudita da qual precisa muito para combater o Estado Islâmico e pôr fim ao conflito na Síria, ela não conseguiu, pelo menos publicamente, condenar a execução de um clérigo dissidente que desafiou a família real saudita.

Enquanto a família real saudita vem reprimindo a dissensão e a livre expressão e deixando que sua elite financie extremistas islâmicos, os EUA geralmente têm feito vista grossa ou emitido avisos cuidadosamente formulados em relatórios de direitos humanos.

Em contrapartida, a Arábia Saudita tornou-se o mais confiável posto de combustíveis dos EUA, fornecedora regular de inteligência e contrapeso valioso ao Irã.

Durante anos, foi o petróleo o elemento unificador de um relacionamento entre dois países que têm poucos valores em comum.

Hoje, com a produção petrolífera dos EUA em alta e a liderança saudita fraturada, a dependência mútua que remete ao início dos anos 1930, época do primeiro investimento americano nos campos petrolíferos sauditas, já não une os dois países tanto quanto antes.

Mas a turbulência política no Oriente Médio e a percepção americana de que os sauditas são cruciais para a estabilidade na região continuam a manter unido um casamento cada vez mais cheio de atritos.

Assim, no sábado (2), quando a Arábia Saudita executou 47 pessoas, incluindo o clérigo dissidente xiita Nimr al-Nimr, decapitando-os em um estilo que a maioria dos americanos associa mais ao Estado Islâmico que a um país parceiro estreito dos EUA, os esforços do governo para explicar o relacionamento foram mais dificultados que nunca.

Na realidade, as execuções vieram coroar uma série de fatos nos últimos anos que levaram a diferenças de posição entre os dois países.

"Faz tempo que não estamos em sintonia com os sauditas", disse Martin S. Indyk, vice-presidente-executivo do instituto Brookings e ex-assessor do secretário de Estado, John Kerry. "E isso já começou com Mubarak."

Em 2011, os líderes sauditas criticaram o presidente Barack Obama e seus assessores por não terem apoiado o presidente egípcio Hosni Mubarak durante a Primavera Árabe. Seu receio era que Obama fizesse o mesmo se os levantes chegassem à Arábia Saudita.

O acordo nuclear fechado com o Irã reforçou o percepção saudita de que os Estados Unidos estariam repensando o relacionamento fundamental –e representantes sauditas, em visitas a Washington, questionaram abertamente se podiam confiar em seu aliado americano.

Foi o rei Abdullah quem citou um telegrama de 2008 do Departamento de Estado americano, divulgado dois anos mais tarde pelo WikiLeaks, exortando os EUA a "cortarem a cabeça da serpente" –o Irã–, lançando ataques militares.

Abdullah morreu antes do acordo fechado no ano passado, mas os líderes sauditas, que ainda enxergam a mão do Irã por trás de cada ato desestabilizador no Oriente Médio, argumentaram que a administração americana era ingênua ao pensar que o Irã respeitaria qualquer acordo negociado.

Assim, desde que o acordo foi fechado, em julho, a administração Obama vem tranquilizando a Arábia Saudita. Obama convidou os sauditas para uma reunião em Camp David para reafirmar aos aliados árabes dos EUA que os EUA não os estão abandonando –e que lhes venderão pacotes de armas maiores que nunca.

Mas a administração também tem criticado fortemente a intervenção saudita no Iêmen, enxergando-a como um grande fator que desvia as atenções da batalha mais importante contra o Estado Islâmico.

Na versão americana, a nova liderança saudita que luta por influência sob a égide do rei Salman é obstinada, "mais interessada em ação que em deliberação", nas palavras de Indyk.

Quando Kerry aconselhou os sauditas a não executar al-Nimr, clérigo xiita nascido na Arábia Saudita e que desafiou diretamente a família real, ele foi ignorado.

"Essa foi uma preocupação que já levantamos de antemão com os sauditas", admitiu na segunda-feira o porta-voz da Casa Branca, Josh Earnest. Ele disse que a execução "precipitou os tipos de consequências que temíamos".

SEM CRÍTICAS MAIS DURAS

Mas a administração não se dispôs a tecer críticas mais duras que essas aos sauditas. Pressionados a condenar a execução de al-Nimr, as autoridades pediram calma de todas as partes.

O porta-voz do Departamento de Estado, John Kirby, exortou a região inteira a concentrar-se no esforço de enfrentar o Estado Islâmico e lidar com a crise síria.

"Se vocês estão perguntando se queremos nos tornar mediadores em tudo isto, a resposta é 'não'", disse Kirby a jornalistas. "Soluções reais, de longo prazo, não serão ditadas por Washington."

Falando reservadamente, vários representantes dos EUA expressaram indignação com a Arábia Saudita por ter escolhido este momento para as execuções.

Eles observaram que Obama e Kerry vêm mantendo contato regular com membros da liderança saudita. Obama telefonou para pedir que os sauditas participassem das discussões sobre o processo de paz na Síria –do outro lado da mesa em relação aos iranianos.

Kerry viajou a Riad, a capital saudita, e pediu aos sauditas que organizassem os rebeldes sírios em um único grupo para negociar um acordo de cessar-fogo com o presidente Bashar al-Assad.

Mas os sauditas foram parceiros relutantes, dizendo às suas contrapartes ocidentais que estariam de acordo, mas prevendo que o esforço de Kerry fracassará porque, dizem, o Irã jamais concordará com qualquer processo que leve ao afastamento de Assad.

Enquanto isso, a participação saudita inicial nos ataques aéreos contra o Estado Islâmico acabou minguando, na medida em que eles deslocaram seus ativos militares para sua campanha contra os rebeldes houthis no Iêmen, apoiados pelo Irã.

Outros que lidam com os sauditas dizem que há um grau de tensão raramente visto antes na liderança de Riad.

"O reino enfrenta uma potencial 'tempestade perfeita' gerada pela queda da receita petrolífera, pela guerra no Iêmen, que não tem data para acabar, por ameaças terroristas de múltiplas origens e pela intensificação da rivalidade regional com seu arqui-inimigo, o Irã", escreveu na segunda-feira Bruce Riedel, ex-funcionário da CIA com longa experiência na região.

Patrick Clawson, do Instituto Washington de Política do Oriente Médio, enxergou um desejo de transmitir uma mensagem contundente a Washington. Ele escreveu que os sauditas estão dizendo: "Se os EUA não vão enfrentar o Irã, Riad o fará por conta própria".

O receio saudita de que a administração Obama esteja prestes a abraçar o Irã é quase certamente exagerado. Desde o acordo nuclear, os iranianos já realizaram dois testes de mísseis balísticos e, depois de alguns adiamentos, a administração americana parece estar redigindo sanções para responder.

E na semana passada navios da Marinha iraniana dispararam foguetes a 1.400 metros de distância de um grupo de porta-aviões americano e embarcações de escolta. O líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, excluiu a possibilidade de cooperação com os EUA, embora o Irã tenha comparecido às discussões sobre a Síria.

Representantes dos EUA às vezes refletem sobre a possibilidade longínqua de os Estados Unidos e o Irã algum dia serem aliados mais naturais que os Estados Unidos e a Arábia Saudita. Mas essa parece ser uma possibilidade distante.

"Não é como se tivéssemos uma alternativa iraniana", disse recentemente um funcionário sênior da região do golfo. "E, se não temos alternativa, a melhor escolha é parar de reclamar dos sauditas."

Tradução de CLARA ALLAIN


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