Folha de S. Paulo


Em 2015, Putin confirma papel de protagonista em cenário convulso

O presidente da Rússia, Vladimir Vladimirovitch Putin, traduziu à sua maneira uma das máximas proferidas por seu conterrâneo, o escritor Liev Tolstói. Em vez de falar de sua aldeia para tornar-se universal, guerrear em seu território para alcançar o universo —ou, ao menos, metade do planeta.

Entendeu ele que esticar manobras e mísseis em direção ao Ocidente não dá muito certo -além de causar muita polêmica e represália econômica-, melhor mesmo é voltar às origens. Canalizar esforços na Síria, provocar a Turquia, mostrando assim onde suas alianças são mais eficazes e sua língua mais bem compreendida.

Tem dado certo. Pelo terceiro ano consecutivo, Putin foi eleito o homem mais poderoso do mundo pela revista "Forbes", a qual parece utilizar critérios semelhantes aos quesitos que orientam os jurados das escolas de samba por aqui: alegoria, fantasia, evolução.

Na semana passada, encontrei um russo que estava a trabalho em São Paulo e contei-lhe do personagem sobre o qual iria escrever. Ele respondeu: "Minha mulher é contra ele, mas eu sou a favor: a Rússia precisa de czares, infelizmente".

Ouvi essa afirmação várias vezes nos quatro anos em que vivi em Moscou, mas os argumentos utilizados serviriam perfeitamente ao Brasil: país grande, grandes diferenças econômicas e culturais etc.

Acontece que a Rússia não é o Brasil, apesar da tentativa dos Brics de forjar uma aliança. E a Rússia também não é a Alemanha dos anos 30 do século passado -o que derruba de certa forma as diversas comparações feitas, inclusive por escritores abalizados, entre Putin e Hitler.

Parece um paralelo motivado mais pelo medo do que pela análise.

O filme "Tsar" (2009), de Pavel Lounguine, traz um retrato acachapante de Ivan, o Terrível. Autoritarismo exercido pelo prazer de exercê-lo, enormes traços de psicopatia e a cega submissão do povo fazem um espetáculo dantesco e provavelmente realista da época.

Forçando um pouco, desenha-se uma ponte com o filme "O Sol Enganador" (1994), de Nikita Mikhalkov, em que um oficial comunista é injustamente acusado de urdir uma insurgência para matar o ditador Joseph Stálin. E é executado justamente por um ex-namorado de sua mulher.

Em pleno verão, em plena casa de campo, nas fuças da família inteira e da pequena Nadienka, a caçula que diz ao pai, enquanto navegam no rio, a melhor frase do filme: "Para mim, estar com você é tão bom".

Tudo isso não faz tantos anos assim. Acontece que defendo a tese de que cada país vive em seu tempo particular, e a Rússia não é exceção.

Muito do que perdemos em valores e densidades, ou do que nunca tivemos, na eterna posição de país jovem, existe ainda ali. E sempre existirá.

É sobre essas convicções, sobre a cultura adquirida através das gerações, sobre o respeito e o desrespeito às tradições, que Putin sedimenta seu poder.

Há poucos dias, mais um exemplar do cinema russo veio à tona: "Uma janela para Paris"(1993), de Youri Mamine, aqui estranhamente traduzido por "Salada Russa em Paris".

Digo, quase veio, quando, após os atentados na capital francesa, os dois presidentes tentaram unir forças no combate ao terrorismo.

Claro que na segunda frase esbarraram em obstáculos intransponíveis -e a janela para Paris mais uma vez se fechou.

São esses isolamentos inevitáveis, discordâncias atávicas, como a que se refere ao presidente sírio, amigão de Putin, e a seus opositores, que conduzem a impasses diários.

A cumplicidade circunstancial diante de uma ou outra crise jamais se sobrepõe à alma russa.

A partir da qual surgiu uma das mais perfeitas literaturas do mundo. Uma das melhores cinematografias. E diante da qual os meandros políticos do século 21 -ainda uma espécie de futuro por lá-, deveriam se curvar.

Não para reforçar o eventual poder de um presidente que afaga gatinhos e cavalos a depender da geografia. Mas para reconhecer que aquilo que os russos resgatam em seu comportamento de história e conhecimento é a melhor bagagem para enfrentar o presente de um mundo tão intrincado.

O Terceiro Reich pretendia chapar a humanidade num único tom ariano. Daí a intolerância. Putin, 63, em seu jet ski, desliza ágil pelas diferenças. Daí a inteligência.

VIVIEN LANDO é diretora cênica de ópera e escritora. Publicou "Balalaicas e Mandolinas" (Objetiva, 1997), entre outras obras


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