Folha de S. Paulo


Receber refugiados é saudável para a economia, diz comissário de Direitos Humanos da ONU

Nascido na Jordânia, um dos países que mais recebem refugiados da guerra civil na vizinha Síria, o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein, diz que a grave crise de refugiados vista no mundo hoje só será resolvida com "um grande senso de generosidade".

Em entrevista à Folha durante breve passagem pelo Brasil, onde participou da Reunião para a América Latina e o Caribe sobre a Década Internacional de Afrodescendentes, Hussein diz que os países europeus precisam entender que receber refugiados não significa "o começo da destruição do Estado".

Renato Costa/Folhapress
O alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Raad al-Hussein, em entrevista em Brasília
O alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Raad al-Hussein, em entrevista em Brasília

Em Brasília, o mais alto representante da ONU para Direitos Humanos foi recebido pelo chanceler Mauro Vieira, pelo presidente do STF, Ricardo Lewandowski, e se reuniu com grupos da sociedade civil.

Leia a seguir trechos da entrevista.

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Folha - O mundo enfrenta sua maior crise humanitária neste século com um intenso fluxo de refugiados. Como chegamos a este ponto?

Zeid Ra'ad Al Hussein - O que estamos vendo em todo o mundo é um novo levante de um nacionalismo étnico que entende que, para preservar os costumes, é preciso deixar os estrangeiros de fora do país. Esse sentimento está se espalhando pelo mundo.

Precisamos ver uma nova governança global sobre migração onde haja muito mais compartilhamento de responsabilidades, e não só um grupo de países que dá para contar nos dedos recebendo uma grande quantidade de requerentes de asilo.

E claramente temos que reforçar a Convenção [das Nações Unidas sobre o Estatuto] dos Refugiados.

Precisamos também que os Estados reconheçam que todo migrante, seja refugiado ou não, deve ter os direitos respeitados e ser tratado com dignidade. Isso requer recursos volumosos, mas a governança já é difícil e a boa governança é muito difícil.

Como convencer os países de que eles têm o dever de receber os migrantes?

O que vemos, historicamente, é que o fluxo de migrantes sempre é saudável [para um país]. A primeira geração tem que fazer ajustes, mas a segunda e a terceira gerações já vão muito bem se o mercado de trabalho estiver aberto. É um motor para o crescimento.

Não é o que muitos xenofóbicos querem que as pessoas pensem: que é o começo da destruição do Estado. Não é, de forma alguma. E, claramente, países que tiveram uma formação mais pluralista entendem isso.

O sr. é crítico da resposta europeia à crise. Como defende que ela deveria ser?

O que vemos não só na Europa, mas em todo o mundo, da parte de certos líderes políticos, é uma mesquinheza. E isso precisa mudar. Temos que ver um grande senso de generosidade.

Há uma crença, por parte dos nacionalistas étnicos, que você pode, de alguma forma, voltar a ser um Estado etnicamente homogêneo. Isso não vai acontecer. O mundo e os países têm se tornado locais cada vez mais diversos –não há como parar isso.

Cito como exemplo a forma como o novo premiê canadense formou seu gabinete. Há muitos grupos étnicos representados. E metade do grupo é composto por mulheres. No futuro, um gabinete como esse vai representar a realidade de muitos países.

Na sua visão, tratar o conflito nos países de origem é parte fundamental da solução?

É parte da solução. A parte mais trágica disso é que, de várias formas, as pessoas mais vulneráveis estão pagando o preço do fracasso do sistema internacional para acabar com conflitos. Setenta anos depois do fim da Segunda Guerra, temos meios que poderiam nos ajudar a acabar com a guerra, mas não tivemos sucesso.

É trágico que as pessoas que fogem de bombardeios, mortes e tortura na Síria ainda tenham que enfrentar uma viagem perigosa em que são abusados de tantas formas pelo caminho.

Ações militares contribuem de fato para a solução de conflitos, como o da Síria?

A parte mais importante é que a análise [de uma ação militar] tem que ser profunda e precisa, e a fórmula não pode ser pré-concebida. Quando você olha para os conflitos no Oriente Médio, as análises não foram como deveriam ter sido desde o início.
Se vamos acabar com um conflito e tornar a paz permanente, temos que ser muito claros de uma perspectiva de direitos humanos.

O sr. conversou com autoridades brasileiras sobre violações de direitos humanos no sistema prisional do país. O que ouviu delas?

As autoridades foram muito abertas, não houve tentativa de negar ou de dizer que as condições não são críticas. Eu gostaria de ver mais países neste tipo de postura: de reconhecer que há desafios.

Fui informado, nas conversas com o ministro [Mauro Vieira] e com o presidente do Supremo Tribunal Federal [Ricardo Lewandowski], que há tentativas de tentar reduzir as prisões provisórias. Medidas como essas poderiam ajudar. Fiquei satisfeito de ver que há uma atenção das autoridades sobre isso.

Falamos ainda sobre o uso excessivo da força por agentes policiais em algumas circunstâncias. Fui informado sobre os planos que o governo tem para lidar com estes problemas e sobre os impedimentos estruturais.

Eles mostraram querer avançar, reconhecendo que deve haver punição.

Como o sr. avalia a resposta do governo brasileiro ao desastre provocado pelo rompimento de barragens em Mariana ?

Há um reconhecimento de que não foi algo bom, para dizer o mínimo. Nós, que trabalhamos com direitos humanos, levamos muito a sério as obrigações do setor privado ao trabalhar em condições onde, se as coisas não funcionarem, o efeito para as pessoas pode ser monumental.

Temos que ser mais ativos nisso, em todo o mundo. Precisamos ver os países lutando o tempo inteiro pelos direitos humanos. É muito fácil dar as coisas como certas, passar uma lei e depois se acomodar. Os governos não podem se acomodar: tem que fazer campanha, consultar a sociedade civil.

E, no fim das contas, quem poderá dizer se os direitos humanos estão sendo respeitados é a população. Ela que vai dizer se a ONU ou o governo brasileiro estão fazendo o suficiente.

O sr. considera que o governo brasileiro está tendo essa preocupação em relação às empresas envolvidas na tragédia?

Eu prefiro esperar para falar sobre isso, porque não tenho muitos detalhes.

Mas o que estamos começando a ver, em todo o mundo, cada vez mais, é que as empresas estão entendendo que o mercado está mudando de uma forma que eles não imaginavam há 20, 30 anos. O consumidor, o acionista do futuro será muito mais preocupado se o produto ou o serviço compromete os direitos humanos. Então o certo é as empresas sentirem que têm responsabilidades e que devem respeitar o país no qual estão trabalhando.


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