Folha de S. Paulo


Alta incansável do oceano ameaça varrer do mapa nação do Pacífico

Linber Anej vadeia as águas da maré baixa para arrastar pedaços de cimento e fragmentos de metal para a terra e reconstruir a barreira improvisada que protege sua casa contra o mar.

A barreira temporária não é páreo para o mar em ascensão que regularmente inunda os barracões e ruas enlameadas do vilarejo com água salgada e dejetos, mas todos os dias, exceto aos domingos, Anej se une a um grupo de homens e meninos para arrastar os componentes da barreira de volta aos seus lugares.

"É insano, eu sei", diz Anej, 30, que vive com sua família de 13 pessoas, que inclui seus pais, filhos e irmãos, em uma casa de quatro cômodos. "Mas é a única opção que temos."

Em pé perto de sua casa, no limite de uma densa favela de barracões de telhados de zinco, ele diz que "minha sensação é a de estar vivendo embaixo da água".

A um mundo de distância, em salas de conferência de luxuosos hotéis em Paris, Londres, Nova York e Washington, Tony deBrum, o ministro do Exterior das Ilhas Marshall, conta histórias de homens como Anej a fim de informar as autoridades mais poderosas do planeta sobre os perigos que sua nação insular enfrenta no Pacífico, com a alta do nível do mar —e com isso influenciar os termos legais e financeiros de um grande acordo das Nações Unidas sobre a mudança do clima que está sendo negociado em Paris.

O foco de deBrum é claramente o dinheiro do Ocidente —a recuperação de "perdas e danos", na terminologia dos negociadores, pela destruição que o poderio industrial das nações ricas causou ao meio ambiente do planeta.

Muitos outros países de baixa elevação no planeta estão sob ameaça por causa da alta do nível do mar. Em Bangladesh, cerca de 17% das terras podem ser inundadas, até 2050, o que deixaria 18 milhões de desabrigados.

Mas as Ilhas Marshall têm em mãos uma carta importante: sob um tratado de 1986, os cerca de 70 mil moradores das Marshall, devido aos duradouros elos militares entre as ilhas e Washington, estão livres para emigrar aos Estados Unidos, uma licença que se tornará mais atraente à medida que as águas em torno das ilhas subirem.

O debate sobre perdas e danos vem sendo intenso porque a forma final do acordo de Paris pode requerer que os países desenvolvidos, antes e acima de todos os Estados Unidos, paguem bilhões de dólares a países vulneráveis como as Ilhas Marshall. Importantes líderes republicanos no Congresso norte-americano já estão se preparando, dizem, para a batalha em defesa do contribuinte norte-americano.

"Nossos eleitores estão preocupados com o fato de que os compromissos assumidos pelos Estados Unidos reforcem economias estrangeiras à custa dos trabalhadores norte-americanos", escreveram 37 senadores republicanos em uma carta divulgada no mês passado. "Eles também estão céticos quanto a enviar bilhões de dólares de seus suados ganhos a autoridades de países em desenvolvimento."

Mas deBrum não se deixa abater.

"Não faz sentido para nós ir a Paris e voltar com algo que diga que 'dentro de alguns anos, seu país estará submerso'", declarou o ministro em entrevista em sua casa à beira-mar em Majuro, a capital das Ilhas Marshall. "Vemos os danos acontecendo agora. Estamos tentando forçar o recuo do mar."

GANHANDO ATENÇÃO

No mundo dos negociadores mundiais da mudança climática, porém, de Brum vem conquistando avanços. Ele conseguiu participar de reuniões do Fórum das Grandes Economias, um grupo de 17 potências mundiais que se reuniu a convite do secretário de Estado norte-americano John Kerry para discutir a política do clima antes da reunião de Paris. Cabe a ele o crédito por introduzir ou reforçar significativamente alguns pontos do anteprojeto de acordo que deve emergir em Paris —especialmente a definição de um preço para a destruição causada pela mudança no clima.

DeBrum pressionou pela realização de reuniões a cada cinco anos, depois da conferência de cúpula de Paris, a fim de reforçar a severidade das medidas internacionais de corte de emissões de carbono. Ele aponta que a ministra do Meio Ambiente do Brasil, um dos maiores emissores de carbono do planeta, mencionou o plano das minúsculas Ilhas Marshall para reduzir suas emissões de poluentes como influência sobre o ambicioso plano brasileiro para fazer o mesmo.

Para deBrum, o aquecimento do planeta não é abstrato. Os gases aprisionados na atmosfera pela queima de combustíveis tóxicos causam o aquecimento do planeta, e as camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida estão derretendo. O nível do mar deve subir entre 30 e 120 centímetros, em todo o mundo, até o final do século, de acordo com as conclusões de uma série de grandes relatórios científicos internacionais.

Em áreas como aquela em que vive Anej, depois que as marés repletas de dejetos invadem as casas, logo surgem febres e disenteria. Em outras ilhas, a invasão de água do mar penetrou o lençol freático salgando fontes de água potável.

Em Majuro, as marés que invadem a cidade danificaram centenas de casas em 2013. A escola primária fechou por quase duas semanas para servir de abrigo a famílias. Naquele mesmo ano, o aeroporto fechou temporariamente depois que as águas das marés invadiram sua pista de pouso.

Esse tipo de dificuldade, descrito por deBrum, tem relevância em Washington porque o que acontece nas Ilhas Marshall afeta os Estados Unidos —em termos de política de imigração, segurança nacional e gastos dos contribuintes.

Os dois países têm uma história complicada. Durante a Guerra Fria, as Forças Armadas dos Estados Unidos detonaram 67 bombas nucleares nos atóis de Bikini e Enewetak, na região das Marshall, depois de transferirem os moradores de Bikini para outras ilhas nas Marshall.

Aos nove anos de idade deBrum estava pescando com o avô quando viu no horizonte o clarão de um dos testes. "Em segundos, o céu inteiro ficou vermelho, como se um aquário tivesse sido colocado sobre a minha cabeça e sangue derramado pelo lado de fora", recorda.

PORTAS ABERTAS

A barganha já resultou na formação de comunidades de milhares de ilhéus das Marshall em Springdale, Arkansas, e Salem, Oregon, em fuga de um futuro inundado. O acordo de 1986 também estabeleceu um fundo do governo norte-americano para apoiar os ilhéus de Bikini —desde que eles continuassem a viver nas Ilhas Marshall. Agora, os ilhéus de Bikini desejam usar recursos do fundo para bancar sua transferência aos Estados Unidos.

Nas primeiras décadas de sua carreira no serviço público, deBrum, 70, trabalhou como enviado diplomático para ajudar seu país a se recuperar do efeito dos testes nucleares. Agora, seu foco passou a ser recuperar o prejuízo causado pela mudança do clima.

"Tony claramente é participante importante na questão das perdas e danos", disse Todd Stern, o principal negociador norte-americano quanto à mudança do clima. "Ele tem muita credibilidade nessas negociações."

MOSTRANDO AO MUNDO

Obama quer estabelecer um legado na política do clima, e funcionários de seu governo vêm discretamente encorajando deBrum a expor as Ilhas Marshall como símbolo dos perigos da mudança no clima. O governo Obama pode ter ajudado em alguns dos esforços de deBrum, mas não chegou a apoiar a inclusão no tratado de terminologia que estabelecesse responsabilidade legal dos países ricos quanto às perdas e danos.

Nas questões de defesa, o valor estratégico das Ilhas Marshall para os Estados Unidos não depende mais dos testes nucleares, mas de Kwajalein, o maior dos atóis do grupo, que abriga o Centro Ronald Reagan de Teste de Mísseis Balísticos de Defesa.

Os 1.200 norte-americanos que vivem na base lançam mísseis, operam programas de armas espaciais e acompanham pesquisas da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa), com um orçamento anual de US$ 182 milhões. Cerca de 900 trabalhadores das Ilhas Marshall viajam de balsa ao local a cada dia para trabalhar no centro.

O Pentágono, que tem um arrendamento sobre Kwajalein até 2066, encomendou estudos científicos sobre o efeito da alta do mar sobre o trabalho da base. Em 2008, uma onda gigante varreu a base e destruiu todas as fontes de água potável da ilha. As Forças Armadas responderam com dispendiosas máquinas dessalinizadoras, e muralhas de proteção feitas de riprap, um granito fortificado usado em engenharia hidráulica.

Essa é a espécie de adaptação que deBrum quer ver nas ilhas onde seu povo vive, e ela não seria barata. Entre os termos mais contenciosos a serem negociados em Paris estará o compromisso assumido na conferência de cúpula sobre o clima de 2009 por Hillary Clinton, então secretária de Estado norte-americana, de que os países ricos mobilizariam US$ 100 bilhões anuais até 2020 para ajudar países pobres a controlar suas emissões de gases causadores do efeito estufa e a se adaptarem aos efeitos adversos da mudança no clima. Foi estabelecido um "Fundo Ecológico do Clima" para receber contribuições, e Obama prometeu doação inicial de US$ 3 bilhões pelos Estados Unidos.

"Restaremos entre os 15 países que estão na fila", disse deBrum.

Ele sonha com cidades elevadas em cerca de dois metros nas Ilhas Marshall, e com sistemas de drenagem mais resistentes. "Isso nos compraria pelo menos 20 anos", diz.

Mas, apesar de sua competência diplomática, a defesa de deBrum para uma pequena nação insular que está sendo engolida por um vasto oceano nem sempre se faz ouvir por sobre o ruído. Em uma recente conferência para preparar um anteprojeto do acordo de Paris, Prakash Javadekhar, ministro do Meio Ambiente da Índia, ouviu aos apelos de deBrum e respondeu, bruscamente: "E daí?"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: