Folha de S. Paulo


Curdos dizem que forças especiais dos EUA enfrentam o EI em solo há meses

21.jan.2015/Associated Press
In this image released by the Kurdistan Region Security Council (KRSC), Kurdish peshmerga forces prepare for battle against the Islamic State group, south of the Mosul Dam, in Iraq, Wednesday, Jan. 21, 2015. Kurdish Regional Security Council said Wednesday that Kurdish peshmerga fighters launched a new offensive to secure areas southeast and southwest of the dam. (AP Photo/Kurdistan Region Security Council) ORG XMIT: CAI104
Imagem concedida pelas autoridades curdas mostra forças peshmerga combatendo o EI no Iraque

A tarde é úmida na porção iraquiana do Curdistão, e Peshawa, 29, um combatente peshmerga (nome dado às tropas curdas), tira do bolso seu celular Samsung Galaxy, realiza uma busca rápida em seus arquivos até encontrar o vídeo que procura, e aperta play.

O vídeo, gravado pouco depois do alvorecer em 11 de setembro, mostra quatro homens altos e de aparência ocidental envolvidos em combate aberto contra milicianos do Estado Islâmico (EI) no norte do Iraque. "São norte-americanos", diz Peshawa, em tom confidencial.

Um deles está agachado por trás de uma metralhadora, disparando sem parar de uma posição fortificada. Um segundo está estendido no chão alguns metros adiante, apontando um longo fuzil contra o inimigo. Um terceiro usa uma câmera com lente de longo alcance para tirar foto após foto, e o quarto está mais recuado, aparentemente supervisionando os demais durante o combate a sudoeste da cidade de Kirkuk.

As imagens, diz Peshawa, são prova de que as forças especiais dos Estados Unidos estão travando uma guerra clandestina nas linhas de frente do Iraque já há meses. Uma afirmação como essa poderia influenciar o febril debate sobre se o presidente Barack Obama deveria agir com mais força e rapidez contra o EI depois dos ataques terroristas em Paris, reivindicados pela facção.

Uma série de atrocidades terroristas na França, Líbano e outras partes intensificou a pressão sobre Obama por uma atitude mais agressiva contra o EI no Iraque e Síria. Tendo conquistado a Presidência depois de prometer em campanha que poria fim à guerra no Iraque, porém, o presidente vem insistindo repetidamente em que não voltará a enviar forças terrestres de combate ao país. Em junho do ano passado, ele anunciou que até 300 conselheiros militares seriam transferidos ao país, mas prometeu que "forças de combate norte-americanas não voltarão a lutar no Iraque".

As Forças Armadas dos EUA negam o envolvimento de quaisquer forças especiais no combate de 11 de setembro ou em três outros incidentes mencionados pelos peshmerga. Mas, em entrevistas ao jornal britânico "The Guardian", uma dúzia de combatentes e comandantes curdos afirmaram que forças especiais norte-americanas estão participando de operações contra o EI há meses.

Reprodução/Facebook/TheGuardian
Reprodução de publicação que mostra supostos soldados americanos combatendo o EI no Iraquecrédito: Reprodução/Facebook/TheGuardian
Reprodução de imagem que mostra supostos soldados americanos combatendo o EI no Iraque

Em outro vídeo, datado de 11 de junho, um soldado norte-americano usando o uniforme e as insígnias de uma unidade curda de combate ao terrorismo é visto marchando em companhia de duas dúzias de peshmerga depois de um combate de sete horas de duração contra militantes do EI na aldeia de Wastana e na colônia de Saddam, de acordo com o peshmerga que gravou o vídeo.

"Inicialmente, os norte-americanos lançaram um bombardeio pesado contra Wastana", disse o major Loqman Mohammed, apontando para o povoado que continua sob controle do EI.

Nenhum dos peshmerga se dispôs a autorizar a publicação de suas imagens ou vídeos por medo de desligamento, mas permitiram que o "Guardian" assistisse aos vídeos e visse as imagens arquivadas em seus celulares.

Karwan Hama Tata, voluntário das forças curdas, exibiu a um repórter do "Guardian" um vídeo que parecia mostrar dois norte-americanos, acompanhados por dois combatentes peshmerga, em meio a uma batalha. Tata disse que "eles estão combatendo, e estão até combatendo à frente dos peshmerga. Não permitem que ninguém os fotografe, mas fotografam todo mundo".

As forças especiais norte-americanas chegaram a Kirkuk alguns meses atrás para treinar, aconselhar e apoiar as forças dos peshmerga que combatem o EI. De acordo com comandantes dos peshmerga curdos, cerca de 30 soldados das forças especiais norte-americanas estabeleceram um centro de operações na cidade.

Um importante comandante dos peshmerga, que não permitiu que seu nome fosse revelado, disse que "em fevereiro, quatro atiradores de elite norte-americanos vieram pela primeira vez ao sul de Kirkuk, porque havíamos perdido diversos peshmerga por ação de atiradores de elite do EI".

"Os atiradores de elite dos peshmerga eram fracos, e perdíamos alguns homens antes de conseguirmos atingir os atiradores de elite do EI. Portanto, precisávamos desesperadamente de atiradores de elite norte-americanos. Eles participaram de todos os combates no sul de Kirkuk, e são atiradores realmente muito bons", disse o comandante.

DOMÍNIOS DO ESTADO ISLÂMICOTerroristas controlam partes da Síria e do Iraque

Um voluntário ocidental que combate ao lado dos peshmerga e não autorizou que seu nome fosse revelado disse que "a piada que corre por aqui é a de que o único motivo para afirmar que as botas dos soldados norte-americanos não voltarão a pisar o solo iraquiano é que eles preferem usar tênis".

A escala da atividade militar nas frentes de combate provavelmente surpreenderá os políticos e analistas que retratam a estratégia atual como limitada a ataques aéreos.

Fontes dos peshmerga dizem que os EUA estiveram envolvidos em uma série de batalhas contra o EI:

  • Em 20 de abril, forças norte-americanas participaram da operação para reconquistar a aldeia de Dawus al-Aloka, a sudoeste de Kirkuk, e dispararam 47 projéteis de morteiro contra as posições do EI.
  • Eles também participaram de duas tentativas de retomar a aldeia de Wastana e a colônia de Saddam, a sudoeste de Kirkuk, em 11 de junho e 26 de agosto.
  • Em 11 de setembro, soldados das forças especiais norte-americanas participaram da operação bem sucedida que retomou Wastana.

O Comando Central das forças armadas norte-americanas, em Bagdá, negou as afirmações dos peshmerga, quando essas informações lhe foram apresentadas. "Não houve forças especiais dos EUA ou da coalizão engajadas em qualquer dos eventos listados por vocês", afirmou o comando. "A coalizão continua a apoiar os parceiros locais em nosso papel de aconselhamento e assistência, mas não temos informações de que qualquer equipe de aconselhamento e assistência da coalizão se tenha engajado nas ações mencionadas."

"Como afirmaram repetidamente os mais altos líderes americanos, os EUA não estão conduzindo uma missão de combate. Continuamos a conduzir uma missão de aconselhamento e assistência", o comando afirmou.

Não está claro por que as afirmações dos peshmerga contrastam a tal ponto com as do Comando Central norte-americano. Mas a linha divisória entre "aconselhar e apoiar" e participação em combate é muito fácil de transpor, afirmaram analistas.

Aaron David Miller, antigo assessor do Departamento de Estado norte-americano para as negociações entre árabes e israelenses, disse que "a questão é situacional, na verdade. O soldado está lá para aconselhar e apoiar mas se vê colocado em situações muito mais próximas de um engajamento ou combate. Nessas circunstâncias, suspeito que a separação se torna muito pequena –questão de metros".

"Estamos desempenhando um papel de aconselhamento em posições avançadas. O teto de uma pessoa é o piso da outra. A distinção é muito tênue", ele afirma.

Miller, que agora é pesquisador no Centro Internacional Woodrow Wilson, em Washington, acrescentou achar "bastante surpreendente" que essas informações não tenham se tornado públicas mais cedo, e previu que esse tipo de atividade seria reforçado depois dos ataques em Paris. "Não é um completo choque para mim a presença de forças especiais aconselhando e apoiando na linha de frente. A dimensão de nossa presença pode não mudar, mas o caráter da missão sim, especialmente na Síria."

As ações das forças especiais norte-americanas perto de Kirkuk atraíram atenção pública no mês passado quando o sargento Joshua Wheeler, 39, foi morto em uma incursão de forças especiais norte-americanas e soldados curdos contra uma posição do EI, o que resultou na libertação de 70 reféns que ao que se acreditava estavam a ponto de ser executados.

Depois da incursão, o coronel Steve Warren, do exército norte-americano, porta-voz do Pentágono, disse a repórteres que "estamos em combate. Quero dizer, claro, que se trata de uma zona de combate. Há uma guerra em curso no Iraque, se é que as pessoas não perceberam. E estamos aqui, e ela está presente em toda parte".

E na semana passada, Brett McGurk, enviado especial do presidente Obama à coalizão mundial que combate o EI, reconheceu que os conselheiros ocasionalmente ofereciam bem mais do que conselhos, tanto no Iraque quanto na Síria.

"Em geral, nossos conselheiros militares estão oferecendo aconselhamento, treinamento e assistência", ele disse. "No entanto, é claro que existem momentos em que acreditamos que sirva aos nossos interesses de segurança nacional e assim o presidente autoriza missões de ação mais direta."

McGurk apontou para uma incursão de forças especiais no Leste da Síria este ano, que tinha por alvo Abu Sayyaf, comandante do EI que os EUA veem como instrumental para a estrutura financeira do grupo. A mulher de Sayyaf foi capturada durante a operação, e os EUA também apreenderam materiais de inteligência.

"[Aquela incursão] foi o que conduziu agora a diversas operações para erradicar as redes econômicas e financeiras do EI em Deir al-Zor, no leste da Síria, e veremos muito mais ações como essas", disse McGurk.

Há cerca de 3,5 mil militares norte-americanos em solo iraquiano no momento. A rede americana "Bloomberg" reportou no mês passado que, de acordo com autoridades norte-americanas e curdas, os EUA mantêm um centro de operações em Irbil, no qual uma força-tarefa de operações especiais vem trabalhando nos últimos meses para identificar e localizar os principais líderes do EI.

A reportagem também afirmava que controladores de ataque norte-americanos, que ajudam a marcar alvos para ataques aéreos contra veículos, acampamentos e edificações controlados pelo EI, também operam no norte do Iraque.

Anthony Cordesman, analista de segurança e inteligência que serviu a governos norte-americanos anteriores, negou que Obama tivesse sido desonesto sobre a extensão do envolvimento militar norte-americano. "Creio que o problema esteja em as pessoas não ouvirem o subtexto daquilo que os EUA dizem", ele afirmou. "Os norte-americanos jamais afirmaram que não há elementos das forças especiais estacionados lá."

Afirmar que não haverá presença de combate não significa dizer que "não haverá presença alguma", acrescentou Cordesman, hoje pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington. "Uma missão de treinamento e assistência é, por sua própria natureza, algo que você não deseja alardear", ele disse.

No Curdistão iraquiano, os combatentes peshmerga dizem que a assistência norte-americana é bem vinda, mas acrescentaram que o que realmente precisam é de mais armas. "Todos os meus soldados compraram as armas que estão usando para combater nesta guerra", disse um oficial curdo. "Eu disse aos norte-americanos que, se eles nos derem as armas e equipamentos de que dispõem, enfrentaremos essa ameaça sozinhos."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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