Folha de S. Paulo


opinião

Impacto na vida de nossos filhos está em jogo na reunião do clima

Todos os anos, as tempestades de monções que se formam no oceano Índico vão bater no Himalaia, formando as mais de 15 mil geleiras da cordilheira. 

O derretimento dessa neve cria centenas de pequenos rios, que formam o Ganges, o rio Vermelho, o Indo ou o Bramaputra, rios dos quais depende 1,3 bilhão de pessoas no Sul e no Sudeste Asiático.

Como o aquecimento do planeta é acentuado em regiões mais altas, a camada de gelo das cordilheiras vem desaparecendo mais rápido do que o esperado –e, com elas, os rios que formavam.

O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, na sigla em inglês) advertiu que o gelo nos Himalaias poderá sumir por volta de 2035. É um exagero para muitos, mas, mesmo que demore mais, imagine 1,3 bilhão de pessoas sem água.

Nenhum sistema econômico ou ordem geopolítica resistirá ao movimento de centenas de milhões de refugiados do clima quando eles começarem a se deslocar rumo à Tailândia ou à Europa.

Entre todos os prognósticos sombrios referentes ao aquecimento global, foi a imagem dessa marcha que me acordou e levou meu sono desde então.

Foi a partir daí que comecei a ler e me envolver cada vez mais com questões ligadas ao clima.

Aprendi que não é mais possível evitar grandes impactos em nossas vidas, mas ainda se pode manter o aquecimento dentro de níveis aos quais podemos nos adaptar.

É isso que está em jogo em Paris nas próximas duas semanas: o tamanho do impacto que sentiremos na nossa velhice e deixaremos para nossos filhos. De que ele está a caminho, não há mais dúvidas.

DISTOPIA

As previsões de secas, inundações, desaparecimento do Ártico com elevação do nível do mar ou acidificação dos oceanos são o cenário que se desenha, mas o drama mesmo talvez esteja na maneira como lidaremos com isso.

Em seu livro "This Changes Everything" (isto muda tudo, em tradução livre), Naomi Klein faz uma descrição desconcertante do mundo para o qual caminhamos.

Países ricos em regiões que serão beneficiadas pelo aquecimento tenderão a fechar suas fronteiras para a parte mais afetada do planeta, aquele 1,3 bilhão, por exemplo –e esse conflito não será muito diplomático, imagino.

As cidades costeiras mais ricas poderão construir diques para se proteger do avanço do nível do mar; cidades pobres seriam engolidas.

A descrição de Klein prossegue se assemelhando a esses filmes nos quais, em um mundo distópico, ricos e pobres estarão ainda mais apartados do que hoje.

O que mais preocupa é que a argumentação faz sentido. Os efeitos são fatos, e as reações previstas seguem os padrões da história.

TRÊS NÚMEROS

Para explicar o que está diante de nós, o jornalista/ambientalista Bill McKibben, da 350.org –uma das ONGs mais ativas em campanhas para deter as emissões de gases do efeito estufa–, resumiu a questão em três números: 2°C, 565 gigatons e 2.795 gigatons.

1) 2°C é o máximo que a temperatura do planeta pode subir, na comparação com a temperatura da era pré-industrial. É consenso que, para além disso, as reações em cadeia do clima não nos permitirão continuar vivendo como vivemos hoje.

2) 565 gigatons é a quantidade de dióxido de carbono (CO²) que poderemos colocar a mais na atmosfera até 2050, se quisermos manter a esperança de que o aquecimento do planeta continue abaixo dos 2°C.

3) 2.795 gigatons é a quantidade de carbono que seria liberado se fossem queimadas as reservas de óleo existentes já localizadas, incluído aí o nosso pré-sal.

Não é preciso ser um gênio da matemática para perceber que as reservas já descobertas e em via de serem exploradas liberariam quase cinco vezes mais carbono do que o planeta suportaria para manter-se mais ou menos estável.

O mais dramático é saber que, apesar dessa conta simples, as companhias de petróleo continuam empregando bilhões não só para extrair esse óleo mas também para descobrir novas reservas –incluindo aí a Petrobras, que continua investindo em prospecção e quer crescer.

A grande questão é saber como convencer corporações e governos a abrir mão de bilhões de dólares que estão ali apenas à espera de serem bombeados.

Sabemos que o tamanho da estupidez humana só é comparável à sua ganância. Como fazer para que bom senso prevaleça?

DEIXE O ÓLEO NO SOLO

Com esses três números em mãos, o jornal britânico "The Guardian" resolveu mudar sua linha editorial em março e comprar a briga do clima. Lançou uma campanha chamada "Keep it on the Ground", ou "Deixe-o [o óleo] no Solo", que prega o desinvestimento em ações de empresas de petróleo.

Começaram convencendo universidades, fundações, fundos de pensão e igrejas a se livrar de suas ações. E está dando certo: o objetivo agora é convencer Bill Gates.

Quando líderes do mundo todo se reúnem para decidir a data em que devem acabar as emissões de combustíveis fósseis, os investidores entendem que ações de petróleo são um ativo condenado: é como ter ações de uma fábrica de máquinas de escrever.

Investir na Petrobras em 2015 parecerá aos nossos netos tão irracional quanto nos parece o investimento dos nossos tataravós em cotas da carga de navios negreiros no século 19. Eu não pagarei esse mico diante dos meus –já me livrei do que tinha.

Hoje, aquela foto do Lula com as mãos sujas de óleo e o sorriso de orelha a orelha anunciando a salvação do Brasil pelo pré-sal é a imagem da insensatez.

Estamos diante do maior desafio da humanidade, mas continuamos querendo expandir o que está nos condenando. De onde vem essa cegueira? Por que nós não reagimos?

Os jornalistas têm uma certa culpa nisso. Apesar de as mudanças do clima estarem acontecendo mais rápido do que o previsto, sua velocidade ainda é lenta para os radares das salas das Redações, que vivem do agora.
Salvo em caso de desastres, o assunto não chega às primeiras páginas dos jornais –e, se não chega ali, não parece tão urgente.

Para quem está se informando, a sensação de impotência diante dos fatos é tamanha que a saída é ignorar ou minimizá-los usando um pensamento mágico: "A ciência encontrará uma solução para retirar o carbono da atmosfera e esfriar o sol".

Para esses que acreditam em duendes, sinto informar que não existe nada em curso nessa área. Eu procurei bastante.

Mas há mais possíveis razões para nossa letargia. A única maneira de diminuirmos as emissões de gases do efeito estufa será mudando nosso estilo de vida, e isso é muito desagradável. Mesmo só parando de comer carne ou andando mais de bicicleta, a questão não se resolve.

Governos precisam estar envolvidos para que se mudem as matrizes energéticas ou a maneira como funciona nossa produção no campo, por exemplo.

Precisamos começar a migrar para um sistema econômico que não seja baseado em consumo e crescimento, um modelo de desenvolvimento que seja sustentável.

Na verdade, existe aí uma oportunidade para uma desejada mudança para melhor, mas volta sempre a questão: como convencer corporações e governos a começar essa mudança de rota?

Creio que a resposta esteja nas mãos dos cidadãos comuns, pelo voto ou pela pressão. Alguns movimentos recentes obtiveram sucesso.

Barack Obama rendeu-se ao movimento Blokadia e parou o oleoduto de Keystone; o Canadá engavetou seus planos de expansão da exploração do xisto.

Pode parecer ingênuo, mas, mais do que nunca, o futuro está em nossas próprias mãos, e não é mais razoável se omitir. Estarei em Paris de olho não nos líderes, mas naqueles que não estão se omitindo e estarão nos eventos paralelos.

FERNANDO MEIRELLES, 60, é arquiteto, diretor de cinema e TV, agricultor e cada vez mais ambientalista

Eduardo Anizelli/Folhapress
Pintura de Mariana Serri
Pintura de Mariana Serri; secas, inundações e desaparecimento do Ártico são o cenário que se desenha

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