Folha de S. Paulo


França não é mais monocromática, diz consulesa após ataques em Paris

Em julho do ano que vem, Alexandra Loras vai embora de São Paulo, onde chegou em outubro de 2012 acompanhando o cônsul da França, Damien Loras, seu marido.

Deixará para trás um Brasil "que lhe deu palco para repensar o racismo", diz a parisiense, filha de mãe francesa e pai originário de Gâmbia. A consulesa se diz em luto e pessoalmente atingida pelos ataques terroristas. "Eu me sinto atacada porque sou a França de hoje, essa mistura racial e multicultural".

Estudiosa do fenômeno da integração, ela quer entender as razões que levam jovens franceses para o terrorismo e deseja que as mulheres entrem no debate do combate ao terrorismo para evitar conflito de proporções maiores.

Como cidadã, ela propõe discutir mudanças na Constituição francesa, que não permite a contagem estatística de grupos étnicos. "Precisamos reestudar uma forma de contar nossa diversidade para assumi-la como riqueza e não como tragédia".

Eduardo Anizelli/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 25-11-2015, 17h20: Entrevista com a consulesa da Franca, Alexandra Loras. Alexandra vem se destacando por opinioes fortes sobre discriminacao racial e religiosa na Europa e tambem no Brasil. Vai lancar um livro sobre personalidades negras de sucesso para servir de exemplo positivo para criancas afrodescendentes. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, FSP-SR) ***EXCLUSIVO FOLHA***
A consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, durante entrevista à Folha

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

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Folha - Como se sente após os novos atentados em Paris?
Alexandra Loras - Estou chocada e de luto. Eu me sinto atacada porque sou a França de hoje, represento a mistura racial e multicultural. Precisamos nos assumir não apenas como a França de Brigitte Bardot, mas também a França de Omar Sy [ator de "Os Intocáveis"], de Jamel Debbouze [humorista].

A França não seria mais predominantemente branca?
Não é mais monocromática. Quando a ministra Nadine Morano [da pasta da Família, no governo Sarkozy] falou que a França é um país de raça branca –e a maioria dos franceses pensa como ela–, estamos numa crise de identidade. Temos que honrar a riqueza do nosso multiculturalismo. O prato preferido dos franceses hoje é o cuscuz marroquino. Nos livros de história, precisamos contar como muçulmanos, negros e árabes vieram ajudar a França a ser uma nação livre. Eles não foram voluntários na Primeira e na Segunda Guerra como dizem.

Como medir essa diversidade?
Na França é proibido contar [estatisticamente] negros, árabes, judeus, asiáticos. Precisamos mudar a constituição de 1958, que queria evitar discriminação após o ocorrido com os judeus. Acho importante reestudar uma forma de contar nossa diversidade para assumi-la como riqueza e não como tragédia.

Como esse caldeirão racial deságua em terrorismo?
Precisamos aprender a conviver, nos abrir para o diálogo inter-religioso. Nos escondemos atrás de uma laicidade que quase virou ateísmo. Um Estado laico respeita todas as religiões. Estamos em meio a um conflito religioso. Temos que olhar o desastre à frente. Não se pode achar que o Estado Islâmico é um povo pequeno, formado por radicais e que bombardeando eles vamos acabar com o terrorismo. O Estado Islâmico ganha US$ 150 milhões por dia com petróleo. O Putin [Vladimir, presidente da Rússia] quer atacar o Catar e a Arábia Saudita por financiarem terroristas. Onde isso vai acabar?

Qual é o seu temor?
Eles podem usar armas químicas? Estão distribuindo antídoto nos hospitais franceses. Precisamos nos proteger e nos defender, mas temos que buscar novas formas de lidar com os conflitos.

Que outras formas?
Precisamos agir para resgatar esses franceses que estão caindo no terrorismo e se radicalizando. A França deveria se inspirar no bispo Desmond Tutu que, depois do apartheid na África do Sul, fez uma comissão da verdade e da reconciliação. Era um espaço onde vítimas e partidários podiam falar. Não se permitia vingança ou retaliação. Foi uma forma de fazer um lado enxergar a dor do outro e humanizar o conflito.

É possível fazer esse diálogo na França de hoje?
Neste momento, talvez não possamos dialogar com o Estado Islâmico. Quando vejo toda a imprensa falando que esses jovens terroristas são estúpidos, eu me pergunto: será que não ignoramos o potencial deles? Como não conseguiram desenvolver seus talentos na nossa sociedade, eles escolheram esse lado escuro da força para existir.

Essa frustração explica o ataque ao estilo de vida francês?
É importante nos perguntarmos se na conquista do mundo, de certa forma, os europeus católicos não foram iguais ou piores do que o Estado Islâmico. Os europeus foram os maiores migrantes e conquistadores, dominando o mundo a partir de seus valores e suas crenças. Na Austrália e nas Américas, promoveram genocídios de indígenas e apagaram civilizações e culturas.

O eurocentrismo estaria na berlinda também?
Sim. Só contamos um lado da história. Temos que desenvolver ações de base para educar professores, por exemplo. O que contamos às crianças católicas, judias e muçulmanas na escola na segunda-feira [após os ataques]? Haverá mais estigmatização? Vamos colocar todos os muçulmanos no mesmo saco? Temos que entender que não vamos combater uma ideologia com bombas, mas com outra ideologia.

Que ideologia seria essa capaz de vencer o terrorismo?
A população mundial tem 52% de mulheres. E nós precisamos entrar nesse debate, trazendo empatia, compaixão e outras técnicas –como terapias comunitárias, justiça restaurativa, diálogo inter-religioso, mediação de conflitos. Uma mãe muçulmana, uma mãe judia ou uma mãe católica que perde um filho nesse conflito sente a mesma dor. Essa tragédia que aconteceu na França nos fez entender, de repente, a problemática dos refugiados. Eles estão fugindo de ataques dos mesmos radicais.

Eles estariam abertos a um olhar feminino?
Eles também têm mães, irmãs, filhas. Se deixarmos só os homens olharem esse conflito vamos acabar com bombas atômicas. Talvez, devêssemos deixar os radicais viverem do jeito que quiserem. A globalização e o capitalismo tiraram a diversidade, trazendo consequências. O individualismo da nossa cultura não seduziu as culturas clânicas e tribais. Precisamos parar de dizer que nós somos os civilizados e eles, os bárbaros. Falta na França escutar as razões desses jovens que se radicalizam. Temos que olhar a causa e não só o problema. Onde está nossa responsabilidade em ter deixado esses jovens caírem no terrorismo?

Por que está escrevendo um livro sobre os gênios negros da humanidade?
Fiz um trabalho com o historiador Carlos Machado, da USP, para quebrar a estigmatização. Vamos contar outra história para resgatar a autoestima das crianças negras. Mostrar nos livros didáticos que André Rebouças, Teodoro Sampaio, Machado de Assis eram afrodescendentes e participaram da criação intelectual do Brasil. A geladeira, a antena parabólica e o marca-passo foram inventados por negros. Temos cientistas, pioneiros, inventores que fizeram coisas geniais para a humanidade. Não há um povo superior a outro.

O Brasil é racista?
O brasileiro não se acha racista e talvez não seja tanto. É um povo acolhedor, mas que não se dá conta de que o sistema no Brasil é um dos mais racistas do mundo. Viajei por 50 países e morei em oito diferentes e vejo aqui um racismo estrutural muito forte. Os negros brasileiros não estão nos ciclos de poder, de liderança. Não fazem parte dos quadros executivos das empresas.

Você é a favor de cotas?
Como se pode falar em meritocracia no Brasil? Os críticos das cotas são pessoas que frequentaram escolas particulares porque seus pais lhes deram privilégios herdados de trabalho escravo. Isso não é igualdade.

Como vê os ataques racistas à atriz Taís Araújo?
Taís Araújo, Maju [Coutinho, moça do tempo do 'Jornal Nacional'] e Alexandra Loras estão na mídia. Nós falamos de preconceitos, mas tantas outras sofrem isso no dia a dia e ninguém sabe. Elas não têm voz. Para desconstruir o racismo precisamos colocá-lo na pauta. Não só em 20 de novembro, pois o Dia da Consciência Negra não é um feriado para ir à praia.

Qual é a diferença do racismo no Brasil e na França?
O que me choca mais aqui é que a maioria da população é negra. Sofro preconceito dentro da minha própria casa. Recebo 6.000 pessoas por ano na residência consular e fico na entrada, como manda o protocolo francês. Muitos convidados passam reto, achando que sou funcionária. Mesmo que fosse, não gostaria de ser invisível. Quando vou a um clube da elite com meu filho, que é loiro, me olham torto por eu não estar vestida de branco como as babás. Quando eu cheguei, minha governanta falou: 'Não é uma negra que vai me explicar como fazer as coisas no meu país.' Ela é brasileira de origem italiana.

E o que você respondeu?
Esse é o problema do racismo. Te paralisa. Posso ter mestrado, ser casada com diplomata, ter sido apresentadora de TV, mas nunca vou ter como responder a esse tipo de violência frontal.

Em julho, você encerra sua estada no Brasil. O que leva dessa experiência?
Vou voltar para minha terra com um filho brasileiro. Ele não nasceu aqui, mas quer comer arroz e feijão e fala francês com sotaque. Eu amo o Brasil porque ele me deu um palco para eu restaurar minha maneira de enxergar o racismo. E vejo mudanças. Sou convidada para ir a Brasília, participei da marcha da mulher negra, um momento histórico que reuniu 20 mil pessoas. O Brasil precisa se olhar no espelho.

Como será retornar a uma França amedrontada?
Meu país sofreu muito por também não querer se reconhecer no espelho. Recebi muitas cartas racistas de franceses me mandando voltar para Gâmbia. O que gosto do Brasil é que você pode ser africano, japonês, libanês, você é brasileiro. Na França, muitas pessoas de origem estrangeira não se enxergam como francesas.

A seleção de futebol da França retrata essa diversidade?
Em 1998, quando ganhamos a Copa contra os brasileiros era a França "black, blanc, beur", ou seja de negros, brancos e árabes. Naquele momento houve união. Zidane [Zinedine, de origem argelina] era um exemplo da diversidade da França. Mas quando ele deu uma cabeçada no italiano, não era mais francês, era um árabe.

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RAIO X
Alexandra Loras, 38

Perfil
Francesa de origem muçulmana e judaica, vive no Brasil desde 2012 com o marido Damien Loras, cônsul-geral da França. Filha de mãe francesa e pai nascido na Gâmbia, nasceu em Paris.

Carreira
Formada em Ciências Políticas com mestrado na Sciences Po (L'École Livre de Sciences Politiques), defendeu tese sobre os negros na TV francesa, onde foi apresentadora por sete anos. Lança me janeiro no Brasil, um livro sobre os gênios negros da humanidade e mantém um blog sobre dignidade negra: www.alexandraloras.com


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