Folha de S. Paulo


Para jovens alvo de terroristas, atentados mudaram preocupações

Na noite da última quinta, dia 19, uma jovem levemente alcoolizada entrou num vagão do metrô que corta áreas boêmias do norte e do leste de Paris anunciando: "Todo mundo no chão! Vamos fazer um treinamento!".

O trem inteiro imediatamente se crispou, antes de outra jovem cruzar o vagão para tirar satisfação.

A reação inflamada é sinal dos tempos; antes dos atentados do dia 13, que deixaram 130 mortos e cerca de 350 feridos, a maioria com idades entre 20 e 40 anos, os circunspectos parisienses teriam deixado passar a gaiatice ébria.

"Os terroristas miraram uma geração que podia se dar ao luxo da despreocupação. Isso se perdeu", diz o estudante Alban, 23, que, atestando o teor da sua fala, não quis informar seu verdadeiro nome.

"Antes, o único problema era descobrir como virar adulto. Agora, caiu o muro que nos separava do mundo, nos demos conta de que o nosso país está envolvido em conflitos no exterior, que sair de casa sem saber se volta é a norma em vários lugares."

Na tarde do dia 19, o jovem bebia com amigas num bar a menos de dois quarteirões do restaurante Petit Cambodge e do bar Carillon, onde 14 pessoas foram mortas.

Às margens do charmoso canal de Saint-Martin, a área forma, com o 11º distrito (palco de outros três ataques, incluindo o maior, à casa de shows Bataclan), o eixo em que a juventude "branchée" (antenada) faz suas noitadas. Antes de ganhar o verniz "cool", essa aglomeração de bairros populares abrigou pequenas indústrias, ateliês e endereços anarquistas.

Mapa dos locais do atentados em Paris

BOBÔS

Hoje, designers, fotógrafos, jornalistas, donos de start-ups, artistas e universitários lideram a turma que circula num perímetro apinhado de bistrôs, cafés e mercados com produtos orgânicos, livrarias e butiques "alternativas" (e caras).

São os chamados "bobôs" (acrônimo para "burgueses boêmios"), que escolheram a região como base há cerca de dez anos, fazendo disparar o preço do metro quadrado e encetando um processo de gentrificação que ameaça expulsar os menos abastados.

"Não dá para entender. Os alvos [dos atentados] são jovens de tendência esquerdista, abertos a outras culturas, que são amigos do árabe dono da casa de chá da esquina", lamenta-se a gerente de uma livraria à beira do canal.

"É talvez o lugar de Paris em que mais há mistura de classes, raças e nacionalidades", faz coro o jornalista Thomas Legrand, coautor de "La République bobo" (a república bobô). "Miraram errado. Ninguém ali vai virar racista ou passar a votar na [partido de extrema-direita] Frente Nacional [que propõe restringir a imigração]."

O que não impede frequentadores da região de se perguntarem por que cidadãos franceses como eles, da mesma idade, respondem ao chamado do Estado Islâmico.

"O fortalecimento do Daesh [acrônimo para o nome em árabe da facção] é o resultado da guerra que a França luta no Oriente Médio, do país bombardeado e não reconstruído. Do fracasso na integração dos imigrantes", diz a educadora Lorraine Guilloteau, 23. "Seus líderes se valem desses nossos erros para inculcar em jovens o desejo de morrer."

Para Alban, o calcanhar de Aquiles francês é outro. "Após a Segunda Guerra, a França não conseguiu mais criar mitos nacionais agregadores. Houve a descolonização no norte da África, mas as comunidades oriundas desses países ficaram órfãs: já não eram magrebinas, tampouco sentiam-se francesas."

Menos preocupada com diagnósticos sociais, a estudante de arquitetura Salomé, 23, toma um chope na calçada do Chez Prune, também à beira do canal. Diz que os episódios do dia 13 despertaram nela um patriotismo insuspeito e o ímpeto de "revalorizar as pequenas coisas, como o cigarro e a cerveja".

Conta que até pensa "uma, duas vezes por dia" nos bombardeios franceses na Síria, intensificados após os atentados, mas que, "no fundo", continua a viver sua vida. "Como naquela música do [compositor francês] Jacques Dutronc: 'Setecentos milhões de chineses/ E eu, e eu, e eu."

O consultor Alex, 33, faz eco. "Deixar de sair é dar a eles o que querem. Não mudemos nossos hábitos! Ocupemos as calçadas dos bares, lotemos as casas de shows!"


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