Folha de S. Paulo


Intolerância visou aquilo que vemos como o mais civilizado, diz historiador

Jorge Araujo - 29.mai.2012/Folhapress
O historiador norte-americano Robert Darnton, 76, em entrevista à Folha em São Paulo, em maio de 2012
O historiador norte-americano Robert Darnton, 76, em entrevista à Folha, em maio de 2012

Para o historiador norte-americano Robert Darnton, 76, os ataques em Paris na última semana visaram atingir "o coração daquilo que, no Ocidente, consideramos ser o mais civilizado".

Na semana anterior, o autor do célebre "O Grande Massacre de Gatos" esteve em Buenos Aires para lançar "Censors at Work" (censores trabalhando), seu mais recente livro, que trata do tema da censura em três situações históricas: a França dos Bourbon no século 18, o "raj" britânico na Índia do século 19, e a Alemanha comunista, no 20. O livro será lançado no Brasil pela Companhia das Letras em maio de 2016.

Darnton também deu uma palestra na Universidad Tres de Febrero e passeou pelas livrarias de Buenos Aires. "Estou aproveitando a vida de aposentado", disse à Folha. O historiador deixou o comando das bibliotecas da Universidade de Harvard, em julho. Agora, além de dedicar-se a uma nova investigação, continua no conselho do projeto de biblioteca digital (DPLA) que criou para combater a digitalização de livros pelo Google.

Especialista em século 18 na França, Darnton falou com a Folha, em Buenos Aires, e posteriormente comentou os atentados em Paris. Leia trechos das duas conversas.

*

Folha - Como o sr. recebeu a notícia dos ataques a Paris?

Robert Darnton - Eu estava dando uma conferência em um silencioso campus no interior dos EUA, justamente sobre a censura, como fiz em Buenos Aires, e a notícia me soou ainda mais terrível.

Por quê?

Porque me lembrei de um comentário famoso do escritor irlandês George Bernard Shaw [1856-1950], que dizia que o assassinato era a pior forma de censura.

Por trás de ambos está a intolerância. E a intolerância pode tomar a forma de uma violência apavorante, atingindo o coração daquilo que, no Ocidente, consideramos ser o mais civilizado.

Para mim, esse coração está localizado em Paris. E meu coração sangra pelos parisienses nesse momento.

Por que decidiu investigar a censura?

Sempre estive interessado na produção de textos no século 18, mas, ao estudar isso na França, percebi a importância que a polícia literária e os censores tinham ao representarem a mão do Estado que ajudou a dar forma à literatura. Eles atuavam antes de os livros saírem, mas também depois, ganhando então o formato da repressão.

Considera que sua investigação de certa forma tenha humanizado a censura?

Creio que a censura tenha de ser compreendida, e não só condenada. Encontrei documentos, na França, por exemplo, em que censores discutiam a qualidade literária das obras, mais ou menos como faz hoje um editor.

Em "Censors at Work", tento entender o que os censores acreditavam que estavam fazendo. Zelando por um sistema cultural ou puramente reprimindo? Tratava-se apenas de intolerância? De que contexto fazia parte?

Meu enfoque pode ser considerado relativista, mas, por outro lado, sou alguém que crê profundamente na liberdade de expressão e de imprensa.

O que os três sistemas de censura que o sr. escolheu [França, Índia e Alemanha Oriental] têm em comum?

Mostram que a intervenção do Estado na produção de textos foi muito além de uma simples "canetada" de trechos ou proibição de obras. Tinha a ver com a forma que acabou dando à literatura e à produção do conhecimento. E a pergunta que sempre faço é: se conseguiram isso na era do livro impresso, o que pode ocorrer em tempos digitais?

O sr. deixou o cargo de diretor-executivo das bibliotecas de Harvard tendo criado, nesse meio tempo, a Digital Public Library of America. Que balanço faz?

Considero um sucesso porque começamos disponibilizando 2,5 milhões de volumes e hoje temos 11 milhões, para um público global, com exceção da Coreia do Norte, e sem que essas pessoas precisem ter algum vínculo com a universidade. A próxima etapa é expandir para uma maior conexão com projetos similares. Já estamos conectados à Europeana [financiada pela Comunidade Europeia], mas não há nada equivalente na América do Sul.

A DPLA foi possível, pelo seu relato, devido ao financiamento de fundações, algo que é tradicional nos EUA, mas não está tão disseminado aqui. Como seria possível algo assim na América Latina?

Creio que o Brasil possua fundações, ainda que em menor número. Mas o Brasil tem, principalmente, um grande mercado leitor. Sempre me impressiona a quantidade de títulos lançados e ver como as pessoas gostam de livros no Brasil, assim como na Argentina. O que falta, me parece, é que alguns editores tomem a liderança de um projeto como esse, sem sacrificar seus interesses econômicos. O custo não é alto, basta vontade.

Qual seria o principal obstáculo então?

Creio que a principal dificuldade sejam as leis de direitos autorais. Hoje compreendem 70 anos após a morte de um autor, o que, na prática, significa um século.

Creio que seja possível criar alternativas. Países como Noruega e Japão realizarem parcerias entre editores e autores, em que se transferem os direitos para que os livros possam estar disponíveis on-line de forma gratuita após um período mais curto.

A vida comercial de um livro, hoje, termina em algumas semanas. Apenas uma pequena quantidade continua sendo vendida por longo tempo. Por que não criar um sistema que permita que cada livro possa estar disponível pela DPLA ou por um projeto como esse em um período de dez anos?

Ao autor interessaria a difusão da obra, e o editor poderia dar vazão a livros de seu catálogo que não vendem.

Em livros anteriores, o sr. estudou a importância de registros mais efêmeros, como panfletos de fofocas, canções e cartazes. Como os historiadores do futuro trabalharão com essa produção efêmera dos dias de hoje, que está principalmente na internet?

Deveríamos estar digitalizando a internet, basicamente. Na época em que começamos a dar importância para essa produção efêmera, ninguém a levava a sério. Os historiadores mais tradicionais consideravam que apenas os livros impressos tinham valor. E o que cartões-postais, panfletos e canções de rua nos mostraram é que eram muito reveladores de aspectos de sua época.

O efêmero dos dias de hoje são os tuítes, os blogs, e temos que gravar tudo isso. Há gente trabalhando nisso, mas ainda é uma iniciativa particular e muito incipiente.

O sr. foi jornalista, seu irmão foi editor do "New York Times", e seu pai, correspondente do mesmo jornal. Como vê a imprensa escrita hoje?

Com preocupação. Vejo iniciativas de jornalismo investigativo surgindo na internet, mas não se financiam da mesma forma. As principais vítimas dessa revolução digital têm sido a imprensa escrita e as pequenas livrarias independentes. Mas não sou pessimista. Nos EUA, por exemplo, caiu em 10% a venda de e-books, e algumas publicações jornalísticas estão revertendo as quedas de circulação. Acho que digital e analógico não se excluem e alternativas estão surgindo.


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