Folha de S. Paulo


Leia carta que o dramaturgo Gerald Thomas escreveu a François Hollande

Caro François Hollande,

Tenho uma pergunta para você:

Isto é uma GUERRA, como você afirma?

Desculpe-me, mas apesar de eu também estar envolvido no calor do momento e no "riocorrente" de emoções depois do massacre de Paris, pode parecer fora de sintonia, mas estou chocado com sua afirmação: "desta vez é GUERRA".
Não, monsieur Hollande, não é! "É um ataque terrorista."

Os franceses sempre partem meu coração, é claro! E sua cultura dos cafés, do existencialismo e estruturalismo, seus filósofos em geral que veem moscas na parede e pensam portanto (não importa)... sua "liberdade, igualdade, fraternidade", sua Constituição, suas revoluções ensinaram lições enormes ao mundo e são inegavelmente comoventes!

E é precisamente por isso que fiquei tão chocado ao ouvi-lo dizer que "desta vez é GUERRA". Não, monsieur Hollande. Uma GUERRA é algo diferente do que acaba de acontecer em Paris.

Escrevo este texto em um país que faz fronteira com o seu e não ouço nada. Se isto fosse uma guerra, minhas luzes estariam apagadas e este artigo provavelmente não chegaria a ser impresso.

Na realidade, este planeta raramente desfrutou um período de 70 anos de (relativa) paz. E estou meio que torcendo para que possamos estender isso.

Você me ouviu, monsieur Hollande.

Quando falo em relativa paz, não quero minimizar as atrocidades desnecessárias de Vietnã, Camboja ou Coreia. Ou até de Ruanda (e eu poderia continuar apontando para as inúmeras consequências equivocadas de prós e contras geopolíticos, de emboscadas aqui e ali), até que tudo PARA de repente, bem diante da minha janela dando para o East River pouco depois das 8h, quando dois aviões se projetam contra as torres gigantes do World Trade Center. Sim, aquilo foi, para nós na época, uma GUERRA.

Ninguém nos Estados Unidos havia visto algo tão tremendo, nunca. Eu assisti a coisa inteira ao vivo, até o fim, o desabamento em cascata de tudo, os escombros, a nuvem cogumelo de cinzas, o amianto queimando, as 3.000 mil almas queimando. Sim, enxergue nisso qualquer metáfora que você quiser. Mas não haverá nenhuma que corresponda à tristeza e ao ódio e medo desta era na qual acabamos vivendo, sr. Hollande.

0 11 de Setembro mudou o rumo da história e, bem, você conhece o resto. O medo que tenho desta vez é o mesmo medo que tive quando um certo sr. "W", mais um Cheney, um Ashcroft e um Rumsfeld (está dando para ouvir os tremores de terra?) decidiram, por todas as razões erradas, colocar nossa existência em perigo. E foi o que fizeram. Esse bando, e esse bando apenas, pôs nossas vidas em risco para sempre, e é aqui que você, sr. Hollande, entra na história.

Naquela época, em 2003, a França fez tudo certo e não invadiu o Iraque, já que Saddam, sem dúvida alguma um FDP perverso, não ameaçava nossa existência e não tinha armas de destruição em massa.

Bem, esse lixo todo do EI é, como você bem sabe, nada mais que uma mistura podre de restos das guerras tribais entre sunitas e xiitas e os resquícios de um exército militar muitíssimo bem treinado que sobrou do partido Baath, de Saddam. Mas o que é que eu sei? O que é que eu sei sobre Assad ser alauita e os curdos e yazidis serem eternamente perseguidos por todos eles.

Com toda seriedade, caro leitor, o conceito de uma GUERRA REAL é algo que você não deve conhecer a não ser que, por acaso, tenha 90 anos de idade. Você tem 90 anos? Imagino que não. Eu tenho apenas 61, mas perdi quase minha família inteira nos campos de concentração, por isso eu conheço.

Uma GUERRA envolve TODOS os países do mundo. Envolve o Exército, a Marinha e a Força Aérea de TODAS AS NAÇÕES.

É isso o que está acontecendo?

NÃO!

Em retrospectiva, vamos olhar para esta tragédia de Paris com tristeza, mas só isso. Assim como olhamos para o 7 de julho de 2005 em Londres com muita tristeza, mas é só.

Vou lembrá-lo outra vez: poucas vezes neste planeta tivemos um período de 70 anos de (relativa) paz, como agora.

"As coisas nunca estiveram tão boas no campo dos direitos humanos, apesar dos 35 milhões de escravos, vítimas do tráfico de pessoas, apesar de tanta violência e tanta fome", diz um amigo quando reclamo da radicalização on-line dos perdedores lunáticos que aderem a esta causa idiota (que, por sinal, mata mais muçulmanos que membros de todos os outros grupos religiosos somados).

Esses perdedores encontraram uma brincadeira divertida para curtir com armas de verdade, em vez de fazer parte de gangues de rua nos bairros urbanos pobres de nossas capitais.

Uma GUERRA é outra coisa.

Sem "bombas INTELIGENTES" ou drones, a Segunda Guerra Mundial deixou algo entre 65 milhões e 75 milhões de mortos. É ISSO O QUE FAZ UMA GUERRA MUNDIAL depois de seis anos.

Lembre-se, por favor, que entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial houve apenas um período breve de calma de 21 anos.

Vinte e um anos e a coisa inteira recomeça. Imagine isso! Hoje em dia uma guerra mundial provavelmente mataria 2,2 bilhões de pessoas. Imagine. É isso o que são as guerras: números imensos, inimagináveis.

Imensos como na Segunda Guerra Mundial, em que morreram 12 milhões na Alemanha de Hitler (6 milhões apenas em Auschwitz) e na União Soviética de Stálin (aproximadamente 13 milhões). E ela trouxe ATAQUES aéreos (os blitzkrieg) dos nazistas sobre a Inglaterra, quando as sirenes tocavam e as pessoas tinham que esconder-se no metrô ou em bunkers. E, quando saíam, não tinha restado nada ou quase nada.

Sim, em uma guerra mundial se usam BOMBAS ATÔMICAS.

Então, monsieur Hollande, isto foi TERRORISMO ou GUERRA?

POR FAVOR reflita com cuidado antes de incitar a população mundial mais jovem (que não sabe de NADA) a pensar que a trágica matança de 128 pessoas foi um ato de guerra. Não foi.

Uma GUERRA começa com a assinatura de um tratado. É uma coisa estranha.

Você assinou um tratado? De Gaulle assinou?

Se, amanhã de manhã, uma família em Colorado Springs acender as luzes, fizer o café e disser bom dia a seus entes queridos, ou se em Tóquio um casal preparar chá verde e sorrir para seus filhos, e no Rio, por exemplo, as pessoas fizerem planos de ir à praia em Ipanema, monsieur Hollande, eu lhe garanto: ISTO NÃO É UMA GUERRA.

É TERRORISMO!

GERALD THOMAS é dramaturgo e diretor de teatro

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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