Folha de S. Paulo


Cercas em fronteiras vão contra ideais da UE, afirma chanceler italiano

Para a Itália, uma das portas de entrada da Europa para os mais 752 mil migrantes e refugiados que cruzaram o Mediterrâneo neste ano, as cercas erguidas por outros países para conter o fluxo de pessoas vão contra o projeto central da União Europeia.

"A resposta [à crise] deve estar numa política comum e não em levantar cercas entre países europeus. A UE nasceu para acabar com esses muros", disse o chanceler italiano, Paolo Gentiloni, em entrevista à Folha nesta quarta-feira (4) em São Paulo, onde deu início à sua visita ao Brasil.

"Reconstruir muros dentro da Europa seria desmentir esse ideal de união."

Marlene Bergamo/Folhapress
O chanceler italiano, Paolo Gentiloni, visita a 21ª Exposição Internacional Triennale di Milano, em São Paulo
O chanceler Paolo Gentiloni visita a 21ª Exposição Internacional Triennale di Milano, em São Paulo

Na última semana, Áustria e Eslovênia anunciaram planos de cercar parte de suas fronteiras. A Hungria já havia levantado antes barreiras.

Gentiloni se reuniu nesta quarta, em São Paulo, com os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. O chanceler, que veio acompanhado de um grupo de cerca de 20 empresários, ainda visitou a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

Nesta quinta, ele será recebido em Brasília pelo vice-presidente Michel Temer e se encontra com seu homólogo, Mauro Vieira, e os ministros Aldo Rebelo (Defesa), Celso Pansera (Ciência e Tecnologia), Eduardo Braga (Minas e Energia) e Nelson Barbosa (Planejamento).

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

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Folha - A UE definiu, em setembro, que realocaria 160 mil refugiados que estão em países 'de entrada' do bloco, mas até agora apenas 86 deixaram a Itália. Como seu país avalia a resposta da UE à crise dos refugiados ?
Paolo Gentiloni - Essa é uma crise muito séria para a Europa. Porém, até a primavera passada [a partir de março] não havia nenhuma agenda europeia sobre imigração. Em 18 de abril, após uma tragédia com centenas de mortos entre a Líbia e a Sicília, o premiê italiano [Matteo Renzi] pediu uma cúpula extraordinária da UE, que ocorreu no começo de maio. Desde então, iniciou-se uma política europeia sobre imigração.

Existe agora um plano europeu para o registro dos imigrantes, para redistribuí-los nos diversos países e para compartilhar também o esforço de repatriar os que não têm direto a asilo e que vêm de países seguros. Essas três coisas devem ser feitas no âmbito europeu.

É verdade que estamos ainda com números muito baixos, mas os princípios já foram decididos, e, portanto, temos que continuar a trabalhar para implementar decisões que já foram tomadas.

O risco que a Europa se divida em termos de migração ainda está presente, mas é menor que alguns meses atrás.

Recentemente, outros países, como Áustria e Eslovênia, anunciaram a construção de cercas para conter o fluxo de pessoas. Qual o impacto disso na solução conjunta?
Nós entendemos as dificuldades de países que têm um fluxo grande e imprevisto de imigrantes. Nós os entendemos porque também o tivemos nos últimos dois ou três anos e trabalhamos muito para salvar vidas e acolher 150 mil, 200 mil imigrantes que vinham da Líbia todos os anos.

Mas a resposta deve estar numa política comum e não em levantar cercas entre países europeus. A União Europeia nasceu para acabar com esses muros, e foi uma experiência extraordinária: os países que guerrearam entre si que depois se uniram.

Reconstruir muros dentro da Europa seria desmentir o ideal de união.

Na última semana, o sr. elogiou a inclusão do Irã nas conversas em Viena sobre Síria. O que realmente espera dessas negociações?
No encontro da última sexta (30), finalmente se abriu um respiro para a única solução possível –que, a nosso ver, é a solução política- e que leve à saída de Bashar al-Assad, mas sem criar um vazio que seria preenchido pelos terroristas.

E para se chegar a esse objetivo, é importante a liderança americana, a atitude construtiva da Rússia vista no encontro de Viena e que países que são verdadeiramente opostos, como o Irã, de um lado, e a Arábia Saudita e a Turquia, de outro, aceitem continuar negociando.

As distâncias são imensas, mas, pela primeira vez, todos estão ao redor de uma mesa, e o governo italiano assim como outros governos europeus, ajuda neste trabalho que é desenvolvido pelos EUA.

O compromisso que tomamos em Viena foi de nos encontrarmos novamente, os ministros de Relações Exteriores, daqui a dez dias.

A oposição síria não participou das conversas. O quanto isso pode prejudicar o processo?
A ideia é que esse fosse um encontro entre ministros de 16 países –países da região, alguns europeus, Rússia, EUA e China. O enviado da ONU [Staffan de Mistura] foi a Moscou e está preparando encontros de comissões mais reservadas para abordar alguns problemas ligados a um possível cessar-fogo e a definição de quais são os grupos que consideramos terroristas. Neste trabalho certamente serão envolvidas as diversas partes sírias.

A Itália considera participar da campanha de bombardeios liderados pelos EUA contra o EI?
A Itália está muito comprometida no plano militar na coalizão contra o Daesh [Estado Islâmico]. Nós somos o país que lidera o treinamento e o fornecimento de armas aos peshmerga [Exército curdo no Iraque] e que é responsável na coalizão, através dos Carabinieri [polícia italiana], pelo treinamento de policiais iraquianos. Fornecemos muito material militar ao Exército regular do Iraque.

Sobre os bombardeios aéreos na Síria, não criticamos os países que os fazem, mas sim a ideia de que a maior tragédia humanitária contemporânea possa ser resolvida através de bombardeios aéreos. Para resolver a crise síria é necessária uma transição política.

Então, para a Itália, os bombardeios não são uma boa solução?
A Itália não acredita que esta seja a carta que irá resolver [o conflito], mas apreciamos que alguns países, como os EUA, que realizam essas incursões, tenham uma função de contenção [do EI]. No entanto, a saída deve ser política.

Não se pode repetir aquilo que foi feito cinco anos atrás na Líbia: uma vitória militar, quando caiu [Muammar] Gaddafi, mas não se tinha nenhuma ideia de como estabilizar o país. Cinco anos depois, estamos ainda no caos.

Portanto, na Síria, a transição deve garantir a saída de Assad, mas num clima de estabilidade e não de chegada dos terroristas.

Joe Klamar-30.out.2015/AFP
US Secretary of State John Kerry (C L) and Russian Foreign Minister Sergei Lavrov (C R) chat before talks with 17 nations, the European Union and United Nations at the Hotel Imperial on October 30, 2015 in Vienna, Austria. Kerry and other leaders are in Vienna to discuss solutions to the conflict in Syria. AFP PHOTO / JOE KLAMAR ORG XMIT: JK
Diplomatas se reúnem em hotel em Viena para discutir o futuro da Síria

O comércio entre Itália e Brasil em 2014 foi o menos expressivo desde 2010. Como impulsioná-lo agora, tendo em vista o cenário brasileiro, com previsão de deficit neste ano?
A nossa visita é muito importante não apenas no plano político, mas também pela presença de alguns dos chefes das maiores empresas italianas. A relação entre Itália e Brasil é tão importante que independe de conjunturas econômicas de um determinado momento.

Queremos dar uma mensagem ao Brasil, aos empresários brasileiros, que a nossa confiança [no país] é sólida e que não é influenciada por variações momentâneas.

As cerca de 900 grandes e as pequenas empresas italianas que estão presentes no Brasil apostam nas potencialidades deste grande país.

Nós também esperamos um maior fluxo de investimentos brasileiros na Itália, que depois de cinco anos de crise, finalmente tem uma expansão gradual.

Uma das pautas da sua visita é a cooperação em Defesa. Como os dois países podem cooperar mais neste campo?
Temos uma extraordinária história de sucesso, de 20 anos, com a produção conjunta de caças [AMX].

Hoje nós podemos cooperar nos setores mais diversos –tanto no setor naval como de aviação. A base para que isso aconteça na indústria da defesa é sempre ter boas relações políticas, um país confiar no outro.

E isso já existe, por exemplo, no Líbano [com a missão da ONU, a Unifil]. A Itália dirige a missão terrestre da Unifil, e o Brasil, a missão naval.

Há alguma parceria em Defesa para ser assinada durante a visita?
Um memorando sobre Defesa foi assinado em 2008 e retificado recentemente. Portanto, já temos a moldura legal e política. Podemos fortalecê-la no plano operacional, naturalmente participando de licitações que serão feitas pelo governo brasileiro. Temos uma indústria muito avançada nos setores naval, de helicópteros e de blindados. Portanto, o leque de possibilidades é muito amplo.

Após extraditar Henrique Pizzolato para o Brasil, a Itália espera que o governo brasileiro reveja a decisão sobre Cesare Battisti?
Eu não relacionaria essas duas coisas. A extradição do Pizzolato foi decidida com base nas nossas leis e, portanto, para nós é uma decisão como todas as que derivam das leis. É uma obrigação.

No que concerne ao Battisti, certamente a Itália não se conforma com a ideia. Já que ele foi julgado culpado por graves crimes, que seja entregue à Justiça italiana.

Nós conhecemos as mais diferentes decisões que o Brasil tomou. Não as compartilhamos, mas não será isso que vai criar problemas entre os nossos países.

O que não se pode é pedir à Itália que renuncie àquele princípio: quem cometeu crimes como aqueles tem que respondê-los à Justiça italiana.

O sr. deve tratar disso com o governo brasileiro?
Não, acho que não. Nós tratamos disso continuamente entre os ministérios da Justiça

Um relatório recente da ONU mostra que as metas apresentadas pelos países para a COP-21 não serão suficientes para manter o aquecimento global no limite dos 2°C. É possível fazer mais para atingir o objetivo até a conferência?
A diferença em relação aos acordos de Kyoto é que agora é necessário um entendimento vinculante, verificável e que envolva, não da mesma forma, todos os países.

Kyoto diz respeito apenas aos países de mais antiga industrialização, mas hoje sem a participação de grandes países como a China, o Brasil, a Índia e a Indonésia, é difícil conter o aquecimento climático.

O papel do Brasil é decisivo. A decisão do governo de propor os próprios compromissos nacionais foi muito importante.

Naturalmente os países de industrialização mais antiga têm que contribuir através das finanças climáticas e ajudar os países de mais recente industrialização nas medidas de luta contra o aquecimento climático.

Mas o compromisso do Brasil, da China, são boas notícias e nos fazem esperar que haverá um bom resultado em Paris.

Mas é possível até o fim deste mês melhorar as propostas?
A União Europeia foi uma das primeiras a apresentar sua INDC [contribuição pretendida nacionalmente determinada], que vale para todos os 28 países e que é muito ambiciosa. Cada país da UE pode fazer mais do que foi apresentado, mas não menos. Por isso acredito que a UE dará uma contribuição importante.

E é importante também que o presidente [dos EUA, Barck] Obama tenha definido esse como um dos desafios mais importantes na conclusão de seu mandato presidencial. Se lembrarmos o período de Kyoto, o comprometimento dos EUA era menos claro.


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