Folha de S. Paulo


Livros expõem resistências no Vaticano às reformas propostas pelo papa

O novo escândalo no Vaticano se intensificou nesta terça-feira (3), com um livro que detalha a ineficiência administrativa e a resistência interna que vêm bloqueando os esforços de reforma financeira do papa Francisco.

Citando documentos confidenciais, o livro expõe a perda de milhões de euros em potenciais receitas imobiliárias, o escândalo da máquina de criação de santos do Vaticano, a cobiça de alguns monsenhores e uma invasão por arrombamento, aparentemente operação de profissionais, acontecida no Vaticano.

"Via Crúcis", do jornalista italiano Gianluigi Nuzzi, tem lançamento marcado para a quinta-feira (5), mas a Associated Press obteve uma cópia do livro na terça.

A publicação do título, e a de um segundo livro contendo denúncias, surge dias depois que o Vaticano ordenou a detenção de dois membros da comissão de reforma financeira criada pelo papa Francisco em uma investigação sobre roubo de documentos.

Na segunda-feira, o Vaticano descreveu os livros como "grave traição da confiança depositada pelo papa e, no que concerne aos autores, uma operação para tirar vantagem de um ato gravemente ilícito de entrega de documentação confidencial".

"Publicações dessa natureza não ajudam de maneira nenhuma a estabelecer a claridade e a verdade, e em lugar disso geram confusão e conclusões parciais e tendenciosas", afirmou o Vaticano.

As detenções e os livros marcam uma nova fase no escândalo conhecido como Vatileaks.

A saga começou em 2012, com uma investigação e denúncia anterior de Nuzzi, atingiu um pico com a condenação do mordomo do papa Bento 16 pela acusação de fornecer a Nuzzi documentos roubados e culminou um ano depois com a renúncia de Bento 16, claramente exausto e incapaz de seguir como pontífice.

O escândalo ainda era recente quando Francisco foi eleito em 2013, encarregado por seus colegas cardeais de reformar a burocracia do Vaticano e limpar as opacas finanças da igreja.

Ele começou a agir de imediato, criando uma comissão formada por oito especialistas para obter de todas as seções do Vaticano informações sobre a situação financeira geral da Santa Sé, que era precária àquela altura.

O monsenhor Lucio Angel Vallejo Balda, um importante funcionário do Vaticano afiliado ao movimento Opus Dei, e Francesca Chaouqui, executiva italiana de relações públicas, eram ambos integrantes da comissão –e agora são alvo de acusações no inquérito sobre o vazamento de informações.

Umberto Pizzi - 15.jan.2014/AFP
O monsenhor Lucio Angel Vallejo Balda e Francesca Chaouqui, em foto de 2014
O monsenhor Lucio Angel Vallejo Balda e Francesca Chaouqui, em foto de 2014

Chaouqui foi citada na terça-feira pelos jornais italianos "Corriere della Sera" e "La Stampa" como tendo declarado que nada tinha a ver com os vazamentos e que havia tentado impedir Vallejo Balda de revelar segredos do Vaticano.

O livro de Nuzzi se concentra no trabalho da comissão e na resistência a seus esforços para obter informações de departamentos do Vaticano que por muito tempo desfrutaram de quase completa autonomia no controle de seu orçamento, nas contratações e nos gastos.

DESPERDÍCIO E SEGREDO

"Sua Santidade (...) há uma completa falta de transparência na contabilidade tanto da Santa Fé quanto do governo do Vaticano", escreveram cinco auditores internacionais a Francisco em junho de 2013. "Os custos estão completamente fora de controle".

Citando e-mails, atas de reuniões, gravações de conversas privadas e memorandos, o livro retrata a burocracia do Vaticano como enredada em uma cultura de inépcia administrativa, desperdício e segredo.

As imputações podem bem estar próximas da realidade, já que Francisco vem repetida e publicamente advertindo a Cúria romana sobre envolvimento em "intrigas, fofocas, panelinhas, favoritismo e parcialidade" e contra o fato de que ela age mais como uma corte monárquica do que como instituição de serviço.

No Natal do ano passado, ele fez uma pregação famosa por desancar seus colaboradores mais próximos, citando as "15 doenças da Cúria", que incluíam viver vidas duplas e hipócritas e sofrer de "mal de Alzheimer espiritual".

AFP - 22.dez.2014
O papa fala das '15 doenças da Cúria' aos membros da igreja
O papa fala das '15 doenças da Cúria' aos membros da igreja, em dezembro passado

O livro foi claramente escrito do ponto de vista dos membros da comissão e encara com simpatia os seus problemas, criando uma narrativa de "nós contra eles", opondo os reformistas à velha guarda entrincheirada do Vaticano, sem mencionar os motivos da velha guarda para desconfiar da reforma.

O livro cita um memorando que listava seis prioridades quando a comissão iniciou seu trabalho. A primeira delas era começar a colocar sob controle o vasto patrimônio imobiliário do Vaticano. Nuzzi cita um relatório da comissão que estima o valor desses imóveis em € 2,7 bilhões, ou sete vezes o valor registrado no balanço da Santa Sé.

Os aluguéis cobrados muitas vezes ficam bem abaixo do valor de mercado –isso quando não são inexistentes–, o que inclui os de apartamentos fornecidos gratuitamente a cardeais e burocratas como parte de seus pacotes de remuneração ou aposentadoria.

O livro diz que se os valores de mercado fossem aplicados, as casas fornecidas a funcionários do Vaticano gerariam receita de € 19,4 milhões ao ano, e não os € 6,2 milhões atualmente registrados. Outras edificações "institucionais" que hoje geram receita zero propiciariam faturamento de € 30,4 milhões.

'POSTULADORES'

A segunda prioridade na lista da comissão era esclarecer como eram administradas as contas bancárias dos "postuladores" do Vaticano, os funcionários que postulam candidaturas à santidade. O processo –que envolve minuciosas pesquisas sobre os feitos "heroicos" dos candidatos à canonização e a busca por curas miraculosas– sempre esteve envolto em segredo.

Depois que o departamento do Vaticano encarregado de canonizações informou à comissão que não tinha documentação sobre as verbas ou as contas bancárias dos postuladores, a comissão ordenou o congelamento dessas contas no banco do Vaticano, afirma Nuzzi.

Em uma indicação das controvérsias causadas pelo trabalho da comissão, Nuzzi relata um incidente pouco conhecido: uma invasão por arrombamento dos escritórios da comissão, em 30 de março de 2014, e o roubo de documentos.

O furto foi claramente realizado por pessoas conhecedoras do local, porque os ladrões sabiam exatamente que armário abrir para obter os documentos.

Por fim, Nuzzi relata a história do monsenhor Giuseppe Sciacca, o segundo em comando na administração da Cidade do Vaticano, que queria morar em um apartamento melhor.

Os principais cardeais do Vaticano muitas vezes desfrutam de enormes apartamentos, alguns dos quais com mais de 400 metros quadrados.

Quando o vizinho de Sciacca, um velho padre, foi hospitalizado por longo período, Sciacca tirou vantagem de sua ausência para derrubar a parede que separava os dois apartamentos e ampliar o seu em um cômodo, tomando posse até mesmo da mobília do padre internado, revela Nuzzi.

O padre idoso terminou por voltar para casa e encontrou suas posses encaixotadas; ele morreu pouco tempo mais tarde segundo o livro. Francisco, que vive em um quarto em uma hospedaria do Vaticano, demoveu Sciacca sumariamente e forçou-o a deixar o apartamento.

O segundo livro, "Avarizia" [avareza], de Emiliano Fittipaldi, correspondente do "La Reppublica" no Vaticano, detalha os delitos financeiros do Vaticano, citando, entre outros documentos, relatórios de auditores independentes.

Entre as revelações, Fittipaldi escreveu em seu jornal nesta terça-feira (3) que uma fundação de apoio ao hospital pediátrico Bambino Gesú em Roma pagou € 200 mil pela reforma do imenso apartamento do segundo em comando do Vaticano, sob o acordo de que o apartamento seria utilizado também para funções hospitalares.

Tarciso Bertone, o antigo secretário de Estado do Vaticano, sofreu ataques no ano passado por conta do apartamento, descrito como uma "megacobertura", que contrasta com a visão de Francisco de uma "igreja dos pobres".

Fittipaldi também revelou que € 378 mil doados em 2013 por igrejas de todo o mundo para ajudar os pobres, o chamado "tostão de Pedro", terminaram em uma conta extraoficial usada no passado para bancar contas de departamentos do Vaticano.

"Avarizia" será lançado na quinta-feira (5).

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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