Folha de S. Paulo


Funcionários do 'IBGE argentino' criticam interferência do governo

Quando chegou ao trabalho, no Indec, o instituto de estatísticas argentino, em 14 de setembro de 2007, a matemática Marcela Almeida, 42, viu pessoas que não conhecia levando suas coisas embora. Mesa, computador, telefone e documentos.

Ela era uma das responsáveis pelos cálculos da inflação no país, estatística que passou a ser retocada pela administração de Cristina Kirchner para exibir números mais favoráveis ao governo.

Marcela e outros funcionários não concordaram com as mudanças e acabaram afastados de suas funções.

Lucas Ferraz/Folhapress
Fachada do Indec exibe uma faixa contra o jornal 'Clarín'; funcionários do órgão denunciam intervenção do governo
Fachada do Indec exibe faixa contra o 'Clarín'; funcionários do órgão denunciam intervenção do governo

"No fim daquele dia, voltei à sala para pegar meus objetos pessoais. Tive que correr, porque uma horda de barra-bravas [violentos das torcidas organizadas, que não raramente prestam serviços aos políticos] desfilava pelos corredores, cantando palavras de ordem e batendo nas paredes, amedrontando os técnicos do instituto", contou Marcela à Folha.

Representante do sindicato, ela não foi demitida. Hoje trabalha em uma sala isolada, em outro edifício, revisando metodologias antigas, que segundo ela não têm nenhuma relação com o trabalho prático do instituto.

"Perdi o acesso aos dados meses antes desse episódio e até abril deste ano não tinha um lugar, uma mesa para trabalhar".

No local onde funcionava a diretoria de inflação, no terceiro andar do edifício que fica a duas quadras da Casa Rosada, foi instalado um escritório do sindicato que é simpático ao governo.

Marcela conta que trabalha atualmente com outros "castigados", como ela classifica os que se opuseram ao kirchnerismo dentro do Indec.

SILÊNCIO

A intervenção dividiu os funcionários do instituto. Segundo Raúl Llaneza, marido de Marcela e também pesquisador do Indec, muitos dos antigos colegas de trabalho se silenciaram para evitar represálias.

"Os colegas evitavam nos cumprimentar, falar em público, mas por debaixo dos panos nos davam apoio", diz Llaneza, 51 anos, 26 trabalhando no Indec.

Os dois passaram a ser lideranças conhecidas pelos funcionários e a matemática aderiu à política: vai concorrer pelo nanico Frente de Esquerda como deputada nas eleições deste ano, mas reconhece que tem poucas chances de se eleger.

ESPERANÇA

Sobreviventes do pior momento de tensão, eles contam que a "profunda tristeza" cedeu lugar à esperança dentro do instituto. Com a proximidade de mudança de governo, diz Llaneza, os funcionários mais antigos do órgão vislumbram o fim da influência do governo na produção dos dados.

"Os kirchneristas estão com as malas prontas", diz.

Embora o atual ministro da economia, Axel Kicillof, afirme que não há mais intervenção no instituto, os números que saem de suas pesquisas ainda são muito discrepantes dos produzidos pelas consultorias privadas.

A inflação, que os economistas calculam ao redor de 27% ao ano, está em 15% nos cálculos do Indec.

O ruído na inflação prejudicou também as estimativas que quantificam a pobreza no país, alvo de críticas da oposição nestas eleições. Na última medição do Indec, de 2011, 5% dos argentinos eram pobres –cálculos privados falam em 28%.

"A maioria dos órgãos públicos passou pela mesma pressão durante o governo kirchnerista, mas no Indec essa dicotomia [entre governistas e antigovernistas] ficou mais visível devido à manipulação dos dados. Todos os partidos hoje falam em acabar com a confrontação e isso pode ser um bom sinal. Tenho esperança de ainda voltar a trabalhar na inflação", diz Marcela.


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