Folha de S. Paulo


Contrabandistas de Gaza temem fim da atividade após Egito fechar túneis

Numa noite recente em Rafah, seis contrabandistas palestinos estavam sentados em volta de uma mesa em um quintal, contabilizando os estragos que o Egito cometeu contra seus túneis nos últimos dois anos.

O Egito dinamitou túneis e injetou gás tóxico neles. Encheu-os com esgoto não tratado.

Wissam Nassar/The New York Times
Palestino tenta tirar água de um dos túneis inundados das autoridades egípcias de acesso à faixa de Gaza
Palestino tenta tirar água de um dos túneis inundados das autoridades egípcias de acesso à faixa de Gaza

No ano passado, o Cairo tomou a medida extraordinária de demolir mais de 3.000 casas no lado egípcio da fronteira, para criar uma zona intermediária que fechasse o acesso aos túneis. Com isso, provocou uma catástrofe humanitária.

Os contrabandistas receiam que agora o Egito tenha optado por uma estratégia que pode assinalar o fim da atividade deles: inundar os túneis com água, para que desabem.

Nos últimos 30 dias o Egito inundou duas vezes uma parte da área de 15 km na fronteira, levando dois túneis a desabar por completo e danificando outros dez, mais ou menos.

Apenas cerca de 20 dos 250 túneis existentes continuam em operação. É a pior situação na memória dos contrabandistas. Eles aguardam, nervosos, o reinício das inundações.

"É o fim para nós", disse o contrabandista de 42 anos Abu Jazar, que, como outros entrevistados para este artigo, se negou a informar seu nome completo, temendo ser identificado pelas autoridades egípcias. "Se estivessem nos bombardeando, teríamos como consertar o estrago."

Israel e Egito impuseram restrições à faixa de Gaza depois de o Hamas assumir o controle do território, em 2007. Mas a repressão egípcia se identificou quando Abdel Fattah al-Sisi tornou-se ministro da Defesa, no governo do presidente Mohamed Mursi, em 2012.

Naquele ano, homens armados mataram 15 soldados em um posto de controle do Exército egípcio no norte da península do Sinai, limítrofe com a faixa de Gaza. Na época, foi o ataque mais letal contra soldados egípcios na memória recente.

Quando Sisi chegou à Presidência, ele viu os túneis não apenas como algo que beneficia o Hamas —que ele rejeitava por considerá-lo um braço da Irmandade Muçulmana—, mas também como ameaça direta à segurança do Egito, afirmando que armas e militantes passavam por eles.

"Desde o início com Sissi, foi 50% duro", disse Abu Jazar. "Agora está 90% duro. Quando ligarem as bombas, será 100%."

No passado, os túneis desempenhavam papel central na economia deste enclave costeiro de 1,1 milhão de habitantes. Muitos dos bens que chegavam a Gaza —animais, carros, eletrodomésticos, materiais de construção— passavam por eles.

Wissam Nassar/The New York Times
Fronteira entre Egito e Gaza; fechamento de túneis agrava situação de pobreza no território palestino
Fronteira entre Egito e Gaza; fechamento de túneis agrava situação de pobreza no território palestino

Desde que a repressão começou, milhares de palestinos ficaram sem trabalho, fato que está agravando a pobreza aguda no território. Os cortes de luz, que já eram longos, pioraram devido ao fechamento dos túneis pelos quais entravam 1 milhão de litros de diesel por dia. Milhares de toneladas de mercadorias deixaram de entrar.

Sisi impôs pressão ainda maior sobre a Gaza com fechamentos prolongados do posto de travessia em Rafah. Os 20 túneis que continuam em operação só dão passagem para itens de pequeno porte, como cigarros e telefones celulares.

Durante o verão, o Egito escavou uma trincheira no lado da fronteira contíguo ao Sinai e então assentou tubulações em paralelo com a estrada que passa pela zona fronteiriça e que é conhecida como a rota de Filadélfia.

Foi bombeada água do mar, que fica próximo, criando um canal de um dia para outro, segundo Abu Ibrahim, um guarda de fronteira palestino. O canal de água inundou dois túneis, que desabaram, segundo os contrabandistas.

A mesma coisa foi repetida no início de outubro, desta vez inundando dez túneis. Abu Khalil, 34 anos, contou que estava fazendo reparos ao seu túnel de 610 metros quando ouviu a água chegando. "Poderíamos ter sido levados por ela."

Ele retornou com 15 trabalhadores e uma bomba hidráulica. Eles passaram dois dias bombeando água para fora do túnel, tentando impedir que suas paredes desabassem.

Abu Khalil disse que depois que toda a água tiver sido retirada, ele vai escorar as paredes do túnel com pranchas de madeira. "Se Deus quiser, vamos retomar o controle."

DESASTRE

Se os episódios recentes de inundação foram um teste, como desconfiam muitos palestinos aqui, uma inundação mais prolongada seria desastrosa. As autoridades de Gaza não conseguiriam bombear a água de volta para o mar com rapidez suficiente.

"Toda esta área será destruída", falou Wael Abu Omar, do Ministério do Interior de Gaza, apontando para as poças de água barrenta que secavam ao sol.

Um representante do Ministério do Exterior egípcio não respondeu imediatamente a um pedido de declarações sobre as medidas mais recentes tomadas para destruir os túneis.

Se as inundações se repetirem, podem ter outras consequências: prejudicar as terras agrícolas próximas e exacerbar a salinidade do aquífero da Faixa de Gaza, que já se encontra fortemente prejudicado.

A possibilidade apavora os moradores da região da fronteira. Eles temem que suas casas desabem. "Dizem que a água vem do Egito", disse Mansoura Abu Shaer, 73 anos, falando diante da porta de sua casa.

Ela e seu marido, 74 anos, já foram obrigados a deixar duas outras casas para trás devido a ataques de Israel. Desta vez, ela teme que seja o Egito que cause seu deslocamento.

Wissam Nassar/The New York Times
Mansoura Abu Shaer, 73, e seu marido moram do lado da fronteira e temem que casa seja derrubada
Mansoura Abu Shaer, 73, e seu marido moram do lado da fronteira e temem que casa seja derrubada

Abu Shaer disse que hoje ela e seu marido passam as noites sentados ao ar livre, atentos para ver se vem uma inundação, "para decidir se precisamos fugir".

Dos 20 túneis ainda em operação, cerca de seis estavam sendo estendidos para que novamente cheguem até áreas construídas. Os contrabandistas disseram que um dos túneis já tem mais de 3km de extensão.

Abu Rabah, cujo túnel está ocioso há meses, analisava suas opções. "Talvez a gente passe por cima da barreira", ele disse. "Ou podemos ir pelo mar. Ou, quem sabe, vamos precisar de aviões. Ou quem sabe deveríamos desistir e ir pescar."

Tradução de CLARA ALLAIN


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