Folha de S. Paulo


Revelação de fraqueza do Exército sírio levou à intervenção militar russa

Associated Press
Imagens feitas por ativistas sírios mostram ataque à cidade de Talbisah, na Síria, na última quarta-feira
Imagens feitas por ativistas sírios mostram ataque à cidade de Talbisah, na Síria, na última quarta-feira

A fraqueza militar da Síria, exposta dolorosamente ao longo dos últimos meses, é o principal motivo para a intervenção militar direta da Rússia na guerra.

Quer seu objetivo seja atacar o Estado Islâmico, quer, como é mais provável, seja o de atacar quaisquer forças rebeldes que estejam combatendo contra Bashar al-Assad, a fim de escorar a posição do líder sírio e permitir a rejeição das demandas de que ele renuncie.

Rússia ataca Síria

Funcionários de governos e analistas dizem que Moscou decidiu aprofundar seu envolvimento depois da queda das cidades de Idlib e Jisr al-Shughour, duas localidades próximas no norte da Síria capturadas por rebeldes em maio, o que serviu como alerta sobre o estado lastimável do Exército sírio.

As duas cidades foram ocupadas pelo Jaysh al-Fateh (Exército da Vitória), uma coalizão de rebeldes islâmicos.

A decisão russa foi causada em parte pelo outro grande aliado de Assad, o Irã, que desempenha papel forte mas discreto na Síria mas em geral reluta em empregar diretamente unidades de suas Forças Armadas.

"Os iranianos disseram sem meias palavras aos russos que se eles não interviessem, Assad cairia, e que eles não estavam em posição de fazer coisa alguma que o sustentasse", disse um diplomata baseado em Damasco.

Os efetivos do Exército regular sírio, segundo estimativas, teriam caído de 300 mil soldados antes da guerra para entre 80 mil e 100 mil agora.

Fadiga, deserções e perdas causaram forte redução de poder de combate, e a natureza sectária do conflito também influenciou a situação.

Ela significa que os soldados alauitas —a seita minoritária à qual pertence a família Assad—, antes totalmente leais ao presidente, agora já não se dispõem a lutar por áreas sunitas, mas apenas para defender seus lares.

"Idlib caiu muito rápido porque os soldados sírios simplesmente não estavam preparados para lutar", disse um especialista sírio. "O Ahrar al-Sham [grupo rebelde] ficou surpreso com a rápida dissolução das defesas".

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DISTENSÃO

As forças de Assad estão gravemente distendidas. Na periferia de Damasco, a 4ª Divisão da Guarda Republicana, comandada por Maher, irmão do ditador, não conseguiu reconquistar territórios controlados pelos rebeldes.

Dentre eles, está a porção leste do subúrbio de Ghouta, atingida por um feroz bombardeio que matou 240 pessoas, na metade de agosto.

Defender a capital e as áreas rurais que a cercam é uma prioridade, mas a escassez de efetivos se traduz em relutância quanto a combater em áreas urbanas.

Assim, o subúrbio de Jobar está em poder de combatentes islâmicos que atiram de lá com seus morteiros contra áreas controladas pelo governo.

Zabadani, uma cidade estratégica na fronteira com o Líbano, só foi recapturada dos rebeldes com a ajuda do Hizbollah e de um grupo palestino leal a Assad.

Assad tratou de suas dificuldades com rara franqueza em um discurso em julho, admitindo uma escassez de efetivos e que teve de abandonar algumas áreas a fim de melhor defender a área de Damasco a Homs e o reduto costeiro dos alauitas em Latakia.

Tendo em conta essa lógica, fazia muito sentido ceder Raqqa, a "capital" do Estado Islâmico, no nordeste do país, e posições isoladas como Palmyra.

Ainda assim, uma política descrita oficialmente como reposicionamento não passa de uma "racionalização a posteriori para a derrota", comentou um consultor estrangeiro bem conectado.

Cartazes de recrutamento espalhados por toda Damasco atestam para a necessidade urgente de mais homens para o Exército, e o mesmo se aplica à recente anistia para os desertores e para os jovens que recusaram o alistamento obrigatório.

O desgaste é aparente: os soldados da guarnição da capital fazem bicos como motoristas de táxi, e se queixam dos baixos soldos, erodidos pela alta acelerada dos preços.

As autoridades sírias dizem que a Jabhat al-Nusra, afiliada local da Al Qaeda, paga muito melhor que as forças do governo. Milicianos precariamente uniformizados, usando calças camufladas e camisetas, operam os postos de controle.

Os jovens que fogem para a Europa muitas vezes contam que o principal fator para sua decisão foi receber a convocação para o serviço militar ou para que se apresentem às suas unidades de reserva.

Outro fator para o declínio do exército regular foi a criação da Força de Defesa Nacional, uma organização de base local com 125 mil integrantes, treinada e paga pelos iranianos, que também favorecem o uso de combatentes xiitas do Iraque, Paquistão e Afeganistão, bem como o do Hizbullah.

No norte, o governo está mantendo o controle da metade oeste de Aleppo, mas Deir el-Zor e Hassakeh estão cercadas pelo Estado Islâmico.

A situação é mais fácil no sul da Síria, em parte porque uma ofensiva rebelde com apoio ocidental, na região de Deraa, não prosperou.

O Exército continua em controle, em uma área repleta de bases devido à sua proximidade da fronteira com Israel.

REFORÇO

O poderio aéreo russo é visto em Damasco como um grande reforço —para missões de combate e para a obtenção de informações melhores.

Especialistas em assuntos militares dizem que a despeito da destruição e das mortes que causam rotineiramente nas áreas rebeldes, os envelhecidos aviões e helicópteros de combate da Síria têm valor limitado para operações táticas.

Os rebeldes estão convencidos de que intervenção russa direta significa apoio total a Assad, e, crucialmente, que não haverá distinção entre os diferentes inimigos que o presidente sírio caracteriza apenas como "terroristas".

De acordo com um comandante do Ahrar al-Sham, o regime está planejando uma ofensiva no norte para recapturar Idlib e a planície de Ghab Ocidental.

Isso abriria a estrada entre Homs e Hama, o que pode explicar os ataques contra o Exército Sírio Livre e outros rebeldes que não fazem parte do Estado Islâmico nas regiões de Talbiseh e Rastan.

Nas últimas 24 horas, sírios reportaram ter avistado aviões que parecem ser russos na base aérea T4, perto de Palmira, e ataques "muito precisos" contra o EI no campo de petróleo e gás natural de Shaar, nas proximidades, que tem importância vital para abastecer a rede nacional de energia.

Se essa presença russa for permanente, qualquer alvo no país estaria a não mais de 20 minutos de voo de distância.

"Quando o EI capturou Palmyra, 224 civis foram mortos em ataques aéreos com bombas improvisadas, por aviões do governo", disse um analista sírio.

"Agora, os ataques são muito mais precisos, com mísseis ar-terra. Isso pode querer dizer que os ataques foram realizados pelos russos, e que evidentemente há novas munições em uso".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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