Folha de S. Paulo


Alvo de esquerda e direita, Podemos enfrenta eleições gerais na Espanha

Fenômeno da tecnopolítica, novo parâmetro para a esquerda, resultado perfeito do triunfo do neoliberalismo.

As definições sobre o Podemos, novo partido espanhol, são de diferentes matizes. O grupo, surgido no ano passado na esteira dos protestos dos indignados com a crise econômica na Europa, disputa o terceiro lugar na preferência do eleitorado da Espanha.

Em maio último, mostrou força nas últimas eleições locais, alcançando espaços, em coalizões, em prefeituras como as de Barcelona e Madri, onde foram eleitas mulheres militantes de grupos contra as políticas oficiais de austeridade.

Em 2014, já havia surpreendido ao conquistar cinco cadeiras no Parlamento Europeu.

Seu desempenho nas eleições gerais previstas para o final do ano é uma incógnita. No meio empresarial, o discurso é de que o Podemos não repetirá, em escala nacional, o desempenho que conquistou localmente –a população não confiaria responsabilidades maiores ao grupo.

Podemos - Intenção de voto

É certo que, até agora, com outras agremiações de diferentes orientações, o grupo encurtou o espaço dos partidos tradicionais do país, o governista Partido Popular (PP), de direita, e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda, que buscam agora reconquistar eleitores.

Bombardeado pela esquerda e pela direita, o Podemos poderá sentir os efeitos da crise que abala o seu primo Syriza, da Grécia, desacreditando iniciativas paralelas de discurso político.

Ao contrário do partido espanhol, o grego é uma frente –destroçada há poucas semanas por sua adesão contrariada às medidas de austeridade impostas pela Europa.

Novas eleições em setembro colocam em xeque a agremiação da Grécia. Na Espanha, o novo partido recebe diagnósticos duros.

"O Podemos é o resultado perfeito do triunfo do neoliberalismo. É um fato da moda, que se explica por razões sociológicas e emocionais. Tem sua origem nos meios de comunicação, é uma marca. A médio prazo, é irrelevante", opina o sociólogo Marcos Roitman, 59, da Universidade Complutense de Madri, à Folha.

Para ele, "os novos partidos que aparecem na Espanha e na Europa são êxitos culturais do neoliberalismo porque não atrapalham o todo, não têm nenhum princípio e compartilham estritamente elementos de marketing eleitoral".

Parlamento

Visão oposta verbaliza o sociólogo e economista Boaventura de Sousa Santos, 74, da Universidade de Coimbra:

"O Podemos é o partido que, na Europa, melhor interpretou a crise da democracia esvaziada de cidadania e ocupada por antidemocratas, plutocratas e até cleptocratas. Fê-lo trazendo para a política os cidadãos que a teoria política –e a esquerda em particular– considerava despolitizados porque não participantes, nem em movimentos sociais nem em partidos", diz o português à Folha.

REFERÊNCIA

Boaventura é uma das principais referências da liderança do Podemos.

Numa tarde de sábado, em meados do mês passado, ele participou de um dos debates promovidos pelo partido em Madri. O tema tinha um enunciado inusitado: "Pensar a Democracia sem Candidatos".

Na mesa, nove debatedores: ninguém tratou exatamente do tema.

Citações do revolucionário Antônio Gramsci (1891-1937), ataques às políticas neoliberais e apoio à Grécia pautaram as intervenções.

Uma das mais aplaudidas foi a da franco-americana Susan George. Militante antiglobalização, ela atacou a mídia.

Eleições autonômicas

Na plateia, mais de 400 pessoas. A maioria ficou até o final de quase quatro horas de reunião. Em fila, duas dezenas pediram o microfone para falar. Falar da dureza da vida, das dificuldades de cuidar de filhos, da insensibilidade do governo.

Ao fundo do palco, uma enorme foto do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), ícone da esquerda mundial.

Alguns fizeram críticas, pedindo mais discussão. Um outro propôs que o partido promovesse um boicote a todos os produtos de multinacionais. Para amenizar o calorão, um jovem percorria as fileiras com um singelo borrifador de água.

A reunião fazia parte de um fórum que tratou de temas tão variados como trabalho precário, energia renovável, migrações, sustentabilidade, direitos dos animais.

Os debates aconteceram em Vallecas, bairro operário da periferia de Madri.

ORIGENS

O lugar viu o partido desabrochar. De lá, a partir de uma rádio comunitária, em 2010, começou a ser transmitido o programa televisivo "La Tuerka" –sucesso de audiência e elemento essencial para explicar a ascensão do Podemos. (Há uma elucidativa coleção de vídeos na internet).

Foi em Vallecas que o principal nome do Podemos passou sua infância. Filho de um casal de militantes antifranquistas, Pablo Manuel Iglesias Turrion conviveu desde cedo com as ideias de esquerda.

Pregados nas paredes da sala de sua casa estavam os retratos de Emiliano Zapata e Karl Marx, conta o jornalista Iván Gil, autor de "Pablo Iglesias, Biografia Política Urgente" (Editorial Stella Maris, 2015).

O próprio nome do líder foi dado em homenagem ao fundador do PSOE, Pablo Iglesias Posse (1850-1925).

Pierre-Philippe Marcou/AFP
Spanish Euro Deputy and leader of left-wing protest party Podemos Pablo Iglesias gestures at a press conference during a meeting of the party's coordination board at it's headquarters in Madrid on August 24, 2015. AFP PHOTO / PIERRE-PHILIPPE MARCOU ORG XMIT: PPM401
Líder do Podemos, Pablo Iglesias fala em evento em Madri

Sua militância começou na juventude comunista, ainda envolta no debate sobre o eurocomunismo.

Depois, ele migrou para organizações antiglobalização e anticapitalistas. Na Universidade Complutense, sua atuação política cresceu –foi lá que ele teceu a sua rede mais próxima e a que hoje lidera o novo partido.

A economista Bibiana Medialdea foi colega de Iglesias em organizações de esquerda e hoje colabora com o programa econômico do partido.

"Demos um salto. Há quatro anos estávamos na praça do Sol. Agora estamos em parlamentos, prefeituras e vamos disputar a eleição geral, embora seja muito difícil ganhar. O mérito do Podemos foi converter o enfado da população em instrumento político", diz ela à Folha.

Ela enfatiza que o partido "soube modernizar sua forma de comunicar-se em relação à velha esquerda e seus símbolos antigos, ligados à classe operária". De fato, nada de vermelho, foice e martelo. O Podemos adota o roxinho, e sua bandeira é minimalista: singelos círculos rabiscados em branco.

"Temos uma mensagem que desafia os partidos de esquerda, que apresentam alternativas acomodada. O Podemos apela à cidadania com mensagens positivas, modernas, transversais, que não são nem de direita nem de esquerda e que podem convencer setores amplos da população", defende Medialdea.

Esse tipo de discurso recebe a condenação de Roitman: "Se você acha que as pessoas são incapazes de entender o que é a esquerda ou o que são os projetos sociais, você está dizendo que o povo é idiota", rebate.

"As esquerdas política e social na Espanha cometeram erros. Mas Pablo Iglesias despreza a história do país ao dizer que ela nunca fez nada e que é preciso defender novas bandeiras. As grandes reformas democráticas no país são impensáveis sem a luta política da esquerda, do Partido Comunista, da Esquerda Unida e de todos os outros pequenos partidos", afirma.

Conforme observa Gil, a esquerda histórica critica o Podemos porque o partido deixa rarefeita a questão da luta de classes, não confere primazia à classe operária nem parece seguir as linhas do marxismo.

BANDEIRAS GUARDADAS

Ao longo do tempo, foi se afastando de aliados, como o governo da Venezuela, e abandonando bandeiras mais contundentes, como a da crítica às bases da Otan no país.

"Moderaram a sua mensagem, eliminando referências de direita-esquerda. Em vez de usar a Venezuela como modelo, aplaudem o sistema educacional finlandês ou a forma estatal de supervisão da economia francesa", anota o jornalista Pablo Rodrígues Suanzes na coletânea "#Podemos, Desconstruyendo a Pablo Iglesias" (Deusto, 2014).

Eleições municipais

Rabo de cavalo, cavanhaque, camisa leve, estilo despojado, Pablo Iglesias, nascido em Madri em 17 de outubro de 1978, quase não usa gravatas –ou as usa de forma solta.

Secretário-geral do partido, ele foi aluno, na Suíça, de personalidades como Slavoj Zizek, Giorgio Agamben, Jacques Rancière, Michael Hardt.

Doutor em ciência política pela Complutense, é fã de Maquiavel e da série "House of Cards". Mas é fascinado mesmo por "Game of Thrones".

Chegou a coordenar "Ganar o Morir, Lecciones Políticas em Juego de Tronos" (Akal, 2014), coletânea que analisa a série e debate o poder.

Iglesias tem fama de ser arrogante e provocador.

Para parte da esquerda, é um quinta coluna. Para parte da direita, um stalinista.

Muitos apontam que possui um perfil bonapartista no comando da agremiação. Sete dos dez membros da cúpula partidária são pessoas que aparecem nos agradecimentos de sua tese de 2008, aponta Gil.

DISCURSO

"O núcleo do Podemos é de pessoas com nível cultural muito alto. Há um problema evidente de desconexão com as dinâmicas sociais reais. Não há uma base organizada e com as lutas dos movimentos sociais, e isso é um problema", avalia Medialdea.

O partido tenta contornar essas deficiências apostando fortemente na comunicação.

Nas palavras do líder Iglesias, em 2012, em Valência: "95% de uma liderança é um dispositivo audiovisual; 95% de uma campanha eleitoral é um dispositivo audiovisual e 95% do que pode dizer uma organização política é também um dispositivo audiovisual. Muito mais importante do que as propostas e de que um eventual desenho de um programa de governo alternativo é o discurso".

Reunindo ciberativistas e especialistas em comunicação em rede, Iglesias construiu um "partido movimento", um fenômeno tecnopolítico, na avaliação de Gil.

Segundo ele: "A mobilização social se transforma em uso propagandístico nas redes, enquanto as propostas são abafadas pela indefinição e apelação das mensagens emocionais sobre as medidas programáticas, lucidamente dosificadas nas televisões comerciais".

O nome do partido remete à campanha de Barack Obama nos EUA ("Yes, We Can").

Na sua estratégia, o Podemos importou da Argentina os protestos de escracho. Adaptou o grito portenho "Que se vayan todos", da virada do século, para a expressão "não nos representam" –que ecoa por aqui também. A mensagem é de que o partido é diferente do status quo político.

"O Podemos é um partido político igual a qualquer outro. Tem muita literatura e pouca concretização no campo político. Foram criados relatos históricos para justificá-lo. O problema, de fato, é como se constrói uma alternativa de esquerda, como enfrentar o neoliberalismo", advoga o sociólogo Roitman.

JUVENTUDE

Independentemente das avaliações, o fato é que o Podemos conquistou muitos espanhóis, especialmente os jovens –encurralados por uma taxa de desemprego que já beirou os 50%.

Os "círculos" do partido proliferaram e "é surpreendente como a agremiação penetra de forma uniforme por todo o território", aponta o cientista político Lorenzo Bernaldo de Quirós.

Pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas, uma agência estatal, ele afirma que o voto no Podemos é essencialmente jovem e relacionado com a crise econômica.

Representação política
Seu apoio tem origem no desencanto do PSOE e na mobilização de "um eleitorado anteriormente apático em termos políticos", escreve ele no livro "#Podemos...".

"O Podemos é até agora a melhor formulação do que pode ser a esquerda no século 21. É o primeiro partido a assumir o que muitos teóricos defenderam: para levar a sério a articulação entre democracia representativa e democracia participativa, os partidos de esquerda têm que adotá-la em seu seio", diz Boaventura.

Segundo ele, os círculos de discussão do partido espanhol foram inspirados no mecanismo do orçamento participativo, usado na Prefeitura de Porto Alegre durante gestões do PT.

Sem qualquer unanimidade, o Podemos provoca debate nas esquerdas.

CORRUPÇÃO INSTITUÍDA

Na visão de Roitman, a questão de fundo é que "a dinâmica do neoliberalismo fez dos partidos instituições corruptas. Partidos tradicionais se transformaram em corruptos, fazendo redes de enriquecimento ilícito, a título pessoal ou partidário", declara.

Apesar do sucesso inicial do Podemos, a rota pela frente parece pedregosa.

Diz Medialdea: "É muito difícil ganhar. Pensávamos que seria suficiente que as populações tomassem consciência das injustiças e optassem por organizar-se e acabar com elas. Estamos vendo que não é suficiente, não é garantia de vitória. O caso da Grécia ilustra bem. A democracia acaba sempre estorvando os mercados".

Há também o fator economia. Dados do PIB divulgados nesta semana (crescimento de 1% no segundo trimestre deste ano em relação ao primeiro) indicam que há recuperação. No entanto, o desemprego persiste: o número de desempregados continua maior do que o de 2011.

Para Medialdea, as melhorias são apenas superficiais e expressam dados sazonais, ligados ao turismo. "Os problemas de fundo da economia espanhola continuam", afirma.

A ver o que dizem as urnas daqui a pouco.


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