Folha de S. Paulo


Minha história: Para brasileira detida no Equador, país vive ditadura

A brasileira Manuela Picq Lavinas, 38, foi agredida por policiais durante uma manifestação em Quito, na última quinta (13). Ela e o companheiro, o líder indígena Carlos Pérez Guartambel receberam pancadas na cabeça e no rosto. Manuela teve o visto cassado e será decidida no fim da tarde desta segunda (17) sua expulsão do país.

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Minha pesquisa acadêmica é principalmente baseada no Equador. Trabalho com temas extrativistas e de direitos humanos, dos povos indígenas e das mulheres.

Cheguei ao Equador em 2004, tinha terminado o doutorado e fui dar aulas no país. Depois, tirei um ano sabático e comecei a escrever reportagens para a Al Jazeera e para outras empresas de comunicação, como free-lancer. Meu foco sempre foram os temas das comunidades latino-americanas.

Em 2013 fui estudar em Princeton, no Instituto de Estudos Avançados; fui a primeira mulher brasileira a ingressar ali. Em junho de 2014, voltei para o Equador e, desde então, estava trabalhando, fazendo jornalismo e estudos acadêmicos.

Voltei porque meu companheiro vive no Equador. Conheci o Carlos [Pérez Guartambel] por meio do movimento indígena e estamos juntos há um ano. Mas também voltei também pelos meus estudos.

Manuela Picq é detida por policiais

A maior parte do pensamento em ciências sociais está baseada no hemisfério Norte e acredito que é importante termos uma produção também na América Latina. Não podemos ser só estudo de caso para os pesquisadores de outros continentes.

No ano passado, assim que cheguei, houve uma grande marcha que atravessou o país em defesa da preservação dos recursos naturais e do seu uso pelos povos nativos. Na última semana, houve a mesma manifestação. Mas dessa vez ela foi maior.

O governo do Equador, assim como muitos governos de esquerda da América Latina, tem uma agenda extrativista muito forte, de exploração dos recursos naturais para uma agenda desenvolvimentista.

No Equador, isso ainda é mais forte, porque o país depende muito do petróleo.

Os povos indígenas nunca estiveram aliados ao governo de Rafael Correa, exatamente devido às tensões pelo uso dos recursos naturais.

É uma contradição, porque foi este governo aprovou a primeira Constituição do mundo, em 2008, que cria a figura dos direitos da natureza. Mas ao mesmo tempo, vive do extrativismo e se aproveitou da bonança produzida pela alta do petróleo nos últimos anos para acelerar a exploração, entregando áreas inteiras do país a empresas chinesas em troca de financiamento.

Quanto mais os militantes fazem consultas, pedem informações e tentam controlar seus territórios, mais o governo reprime.

De um ano para cá, as tensões aumentaram, com a queda do preço do petróleo. Passou a ser preciso produzir mais petróleo para manter a mesma renda.

Como jornalista, eu passei a cobrir essas manifestações e, como acadêmica, analisava essas mobilizações.

Vídeo mostra momento de detenção de jornalista, em Quito

Eu tirei férias neste ano e voltei há poucos dias, não tinha ideia do clima político tenso que iria encontrar no meu retorno.

Os protestos tinham começado no interior do país e se dirigiam para Quito. Eu decidi esperar a chegada dos manifestantes e fui ao protesto na última quinta (13). Fui acompanhar a marcha e também encontrar o Carlos [que era um dos líderes do protesto].

Ele já foi preso três vezes no governo de Rafael Correa. Em 2013, foi acusado de terrorismo e sabotagem contra o Estado por fechar estradas em manifestações. Sem provas, abrandaram a pena para terrorismo altruísta e ele ficou preso 10 dias. Outras lideranças indígenas já foram presas e acusadas criminalmente.

No dia do protesto, houve uma greve geral no país. Carlos estava em situação de perigo e eu queria estar ao lado dele. Nesse protesto, muitas pessoas ficaram feridas.

CASSETETES

Estávamos atrás, longe do cerco policial, e o Carlos estava falando ao telefone. Começou um tumulto e apareceram uns 10 policiais e nos cercaram. Eles começaram a arrastar o Carlos e eu me joguei em cima dele, para evitar que fosse levado. Me arrastaram também. Nos bateram com cassetetes, na cabeça, no rosto, e nos separaram.

Isso ocorreu por volta de 19h. Desde esse momento, passei a ser acompanhada por uma custódia policial o tempo inteiro. Nunca me acusaram ou disseram por que eu estava detida.

Me levaram para o Ministério do Interior e começaram a me interrogar. Me deram um copo de água e começaram a me perguntar quem eu era e o que eu estava fazendo ali.

Eu disse que era brasileira, que queria falar com a minha embaixada. Quando se deram conta de que eu era a companheira do Carlos, eu vi um brilho nos olhos deles, pensando "vamos deportar a mulher do Carlos".

Eu estava cheia de hematomas no rosto, com sangue na cabeça. Decidiram me levar para um hospital. Não pude escolher para onde seria levada, me levaram para o hospital da polícia. No dia seguinte de manhã, por volta de 8h, fui levada direto para o serviço de imigração.

Ali me informaram que meu visto havia sido cancelado. É um comunicado de três linhas, que não explica por que, nem como, nem nada.

Em seguida me levaram para uma delegacia de polícia, sempre acompanhada por vários policiais. Parecia que eu era uma criminosa muito perigosa.

Na delegacia, me informaram que eu estava em situação irregular no país, porque não tinha visto.

Desde então, começou uma longa jornada que segue até esta tarde. Não tive acesso às minhas coisas, minhas roupas, dinheiro, ao mundo exterior e estou presa em um centro de detenção para imigrantes, à espera do julgamento da minha deportação.

É um hotel velho que foi transformado em um centro para imigrantes ilegais. Estou sozinha em um quarto, tive sorte, tem poucas mulheres aqui neste momento. Não posso sair do quarto e tive uma hora de visita no domingo. Sou uma prisioneira mesmo.

AUDIÊNCIA

Meus advogados só puderam entrar duas vezes para falar comigo, por 20 minutos. Não só eu tive os meus direitos constitucionais violados, como o processo de defesa também está sendo uma armadilha. Não acredito que a audiência desta segunda (17) seja algo juridicamente correto.

A juíza vai olhar meus papéis para analisar minha situação no país e decidirá o que fazer. O motivo é que eu não tenho visto e estou em situação irregular no país. Claro, cassaram meu visto na sexta (14).

Aqui no centro de detenção, há pessoas de várias nacionalidades, haitianos, espanhóis, argentinos, cubanos, russos... todos no limbo jurídico, esperando ver seus advogados. Há pessoas presas aqui há 18 meses, outros, doentes, esperam por ajuda médica. Estou em uma prisão melhorada, mas é uma prisão.

Estou sendo tratada como prisioneira política. Tenho mais poder de convocação e mais advogados do que as pessoas que estão aqui, que não têm meios políticos nem econômicos e foram esquecidas aqui.

Carlos é advogado e me representará na corte. A polícia bateu nele e em outros manifestantes indígenas, os detiveram por umas duas horas naquela noite e depois os deixaram ir.

VINGANÇA

Eu acho que fui presa porque sou namorada do Carlos, é uma vingança do governo, e também pelos meus estudos, que tratam de um tema que incomoda. O Equador está em um momento de muito estresse político, o país está em meio a uma crise muito forte.

Neste domingo (16) mesmo, o governo Correa decretou estado de emergência. O motivo oficial é a erupção do vulcão Cotopaxi, mas esse mecanismo colocou os militares com poder absoluto no território nacional por 30 dias, inclusive com controle da informação.

De democrática, essa decisão não tem nada. O Equador está vivendo uma ditadura, que dá poder ao governo para agir contra qualquer dissidente neste momento.

O governo Correa está em crise e aumentaram as vozes em defesa de sua renúncia. O modelo trazido pelo político ao país trouxe muitas coisas boas para o Equador, mas neste momento ele perdeu o apoio social.

A agressão e minha detenção foram horríveis, mas este caso também está ajudando a expor situação atual do Equador e dos povos indígenas.

CRIMINALIZAÇÃO

Estou fraca, com dor de cabeça, mas estou bem. Este é o meu caso, mas o problema vai muito além de mim.

Trata da criminalização dos movimentos indígenas e sociais. Não sou indígena, sou brasileira, tenho cara de branca e olhos claros. Mas a mobilização em torno do meu caso é também um basta a toda essa opressão contra os movimentos indígenas.


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