Folha de S. Paulo


Disfunção política no Líbano provoca 'crise do lixo'

Em um fim de semana normal, os frequentadores do bar Floyd the Dog costumam sair à calçada, copos de bebida na mão, para fumar.

Numa noite de sábado recente, porém, alguns preferiram ficar dentro do bar com as janelas fechadas e o ventilador ligado para impedir a entrada do mau cheiro. Do outro lado da rua, uma pilha colossal de lixo se espalhava ao redor de três grandes lixeiras, cozinhando sob o sol.

Bryan Denton/The New York Times
Sacos de lixo se acumulam em frente ao bar Floyd the Dog em Beirute, no Líbano
Sacos de lixo se acumulam em frente ao bar Floyd the Dog em Beirute, no Líbano

O Líbano está vivendo uma crise de lixo, com imensas quantidades de detritos amontoadas por toda Beirute e outros lugares. Muitos libaneses veem isso como a mais nova e clara manifestação da impotência governamental.

"É um importante sinal de que o governo é disfuncional e não consegue atender às necessidades básicas da população", disse Mario Abou Zeid, pesquisador do Centro Carnegie para o Oriente Médio, em Beirute.

Por toda a capital libanesa, o lixo tomou conta das calçadas e se amontoa sobre carros estacionados, obrigando o pedestre a tapar o nariz e conter a náusea provocada pelo cheiro adocicado de comida estragada que exala das áreas residenciais. Funcionários de estacionamentos e de postos de combustível que são obrigados a trabalhar ao ar livre usam máscaras cirúrgicas para reduzir o mau cheiro. Muitos moradores já deixaram a cidade.

Segundo Abou Zeid, a crise do lixo é um exemplo da incapacidade do governo de cuidar dos problemas do país. "Se em assuntos domésticos como esse eles não conseguem agir nem chegar a um acordo, o que farão diante de questões mais sérias?"

A guerra civil na vizinha Síria e os mais de 1,2 milhão de refugiados que lotam o Líbano estão exaurindo a economia e a capacidade do governo de prover serviços.

As divisões políticas deixaram o país sem presidente durante 14 meses, e o Parlamento atual prolongou seu mandato no ano passado, basicamente reelegendo-se por não obter consenso para uma lei que regulamentasse novas eleições.

A política disfuncional não é novidade no Líbano, um país que tinha 4,2 milhões de habitantes antes da guerra na Síria. Desde que a guerra civil libanesa terminou, em 1990, uma constelação de partidos políticos, em geral sectários, tenta governar por consenso -artigo geralmente em falta no mercado.

Durante 20 anos, o lixo produzido em Beirute e grande parte do Líbano central foi enviado para um aterro sanitário próximo a Naimeh, ao sul da capital. Desde então, sua capacidade foi esgotada diversas vezes. No ano passado, em protesto à renovação do contrato de descarga, as famílias das comunidades próximas bloquearam a estrada de acesso ao aterro, o que provocou o acúmulo do lixo em Beirute.

Os manifestantes reabriram a estrada na semana seguinte, depois que o governo prometeu encontrar uma alternativa até este ano. Não conseguiu. No dia 17 de julho, os manifestantes voltaram, desta vez para demonstrar a falta de confiança no governo e prometer que permaneceriam ali até que houvesse uma solução.

As montanhas de lixo em decomposição e a frustração da população só aumentaram. "Deixar que uma coisa dessas aconteça em Beirute, uma cidade tão populosa, é incompreensível", disse Karim El-Jisr, diretor regional da empresa de consultoria ambiental Ecodit.

Só no dia 27 de julho o governo anunciou algumas medidas para pôr fim à crise, entre elas a coleta do lixo em Beirute, a distribuição para locais não divulgados e apoio financeiro para as áreas que recebem os detritos.
Recentemente, manifestantes protestaram no centro da cidade, alguns pendurando sacos de lixo na cerca de arame farpado que protege a sede do governo. Os libaneses postam nas mídias sociais fotos de seu lixo acumulado, bem como selfies com os garis e piadas sobre os políticos locais.

O bar Floyd the Dog e comerciantes locais contrataram um pequeno trator para limpar a rua, mas o tratorista adoeceu antes de terminar o serviço por inalação dos gases, segundo Ibrahim Kadi, o barman. Ele não acredita que os políticos libaneses se esforçarão para encontrar uma solução definitiva. "Eles nunca vão resolver o problema", disse. "Por mais séria que seja a ferida, vão tapar com Band-Aid."

Colaboraram MAHER SAMAAN e HWAIDA SAAD


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