Folha de S. Paulo


Consenso que sustentou Cristina continuará, diz jornalista argentino

O mandato da presidente Cristina Kirchner chega ao fim em dezembro deste ano, encerrando 12 anos da era kirchnerista.

Em livro que acaba de lançar na Argentina, "Doce Noches" [doze noites], o jornalista Ceferino Reato, 53, afirma que os dois últimos presidentes são filhos da crise econômica e política que colapsou o país em 2001.

O abismo transformou a sociedade argentina e instalou um novo consenso social, ainda vigor e que dita as preferências do eleitorado nas eleições deste ano.

"A 'chefa' se vai", acredita o jornalista. Mas os ventos que a sustentaram no poder permanecem e são fundamentais para entender a Argentina de 2015.

A seguir, a entrevista.

Mariana Eliano/Folhapress
O jornalista argentino Ceferino Reato, que acaba de lançar livro sobre os efeitos da crise de 2001 no país
O jornalista argentino Ceferino Reato, que acaba de lançar livro sobre os efeitos da crise de 2001 no país

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Folha - No seu livro, diz que os Kirchner são filhos da crise de 2001. Poderia explicar?

Ceferino Reato - Os Kirchner souberam entender um conjunto de valores e crenças, compartilhados pela maioria dos eleitores do país, que surge na grande crise de 2001.

É um consenso social distinto do que ocorria nos anos 1990. Na década anterior, acreditamos que o mercado resolveria tudo. Então, as privatizações foram extremas. Privatizamos a YPF [o que corresponderia à Petrobras no Brasil] e vendemos até a "golden share", que permitiria ao governo deter o controle sobre as decisões da companhia.

Fizemos isso alegremente, todos estavam satisfeitos. [Carlos] Menem foi reeleito com mais de 50% dos votos, [Domingo] Cavallo [então ministro da Economia] era uma pessoa muito apreciada.

Depois da crise, aparece outra coisa. Passamos de uma visão totalmente privatista a um estatismo ingênuo. Estatizamos até o futebol [o governo paga pela transmissão de jogos na TV aberta]! E isso não vem só do governo. A oposição também diz atualmente que o futebol deve ser grátis.

Isso é resultado de um novo consenso, em que pensamos que tudo que seja do Estado é melhor do que o do mercado. O Estado nos protege e sempre vai nos ajudar. Então, muita gente que não viaja de avião é a favor de que a Aerolíneas Argentinas seja estatal. Mesmo que isso signifique uma perda de recursos públicos que ninguém sabe quanto é.

Como surgiu esse novo consenso?
A crise de 2001 deixou sem emprego quase um terço da força de trabalho. Havia poucos direitos sociais e uma ausência total de contenção social. As empresas privadas se transformaram em entidades suspeitas, cruéis. O que passou a importar era o Estado e o emprego.

Houve um endeusamento do Estado como protetor social, e uma valorização exacerbada de tudo o que seja produto nacional. Mesmo que esse consenso não seja tão forte quanto já foi no passado, ele ainda é preponderante e influencia a eleição deste ano.

Como influencia?

O opositor Mauricio Macri mudou recentemente seu discurso em direção a uma defesa do estatismo. Isso tem a ver com o convencimento de que, para ganhar uma eleição, será necessário contar com os votos de quem teme voltar à época em que o Estado não protegia, não ajudava.

As pessoas têm medo de ouvir "a Aerolineas será privatizada". Em outros países talvez fizessem as contas de quanto se perde e optassem por outra coisa. Mas na Argentina não se pode discutir isso. As pessoas têm medo da mudança.

O kirchnerismo soube como ninguém entender esse consenso. A oposição se deu conta disso e não quer perder votos aí também.

Esse momento político me recorda o consenso que havia na Argentina em 1999. Todos sabíamos que havia um problema em manter a paridade do peso com o dólar. Mas as pessoas tinham medo da mudança e ganhou a opção mais conservadora, Fernando de la Rúa, que se elegeu prometendo manter a paridade.

Tal qual naquele momento, agora há um fim de ciclo que não se quer ver e em que se prefere continuar com o conhecido. Os políticos, em vez de falar dos problemas desse estatismo bobo, preferem falar que podem administrar melhor a Aerolíneas Argentinas, que não haverá perdas com a estatização do futebol.

Hoje, os dois principais candidatos à Presidência têm a mesma linha de pensamento. Ninguém mais fala em continuidade ou mudança, todos estão falando em manter as coisas como estão.

Foi o kirchnerismo o criador desse consenso social?

Não, de maneira alguma. Tanto é assim que Cristina vai embora e o consenso social que permitiu sua sustentação permanecerá.

Noutro dia fui a um programa de TV e uma atriz defendeu que a Aerolineas Argentinas deveria ser estatal e que deveria estatizar também outras empresas, como as do setor energético. Eu pensei em contestá-la, mas não me animei. Há um consenso tão expandido em favor do estatismo que as pessoas simplesmente não querem ouvir. Defender publicamente uma empresa privada é uma coisa tremenda na Argentina.

A Argentina está em crise?

Não, crise foi a de 2001. Isso que vivemos hoje não é crise, é um problema que vamos resolver a partir de 10 de dezembro [quando assume o novo presidente]. Até lá, os argentinos pensam em como se defender.

O governo está incentivando o consumo. A classe média pode ir a Miami com US$ 750 pagando em 12 vezes em pesos. Todos esperam que será necessário corrigir o atraso cambial [desvalorizar o peso], mas os políticos não querem admitir. Por isso, os argentinos estão se salvando com o que têm: estão comprando dólares, comprando o que podem. A Argentina está vivendo seus últimos meses de liquidação.

O que o kirchnerismo deixa de positivo para a Argentina?

A estatização da YPF acabou resultando em algo positivo com a descoberta da [reserva de gás e petróleo] de Vaca Muerta. Também investiram muito em cultura e em universidades.

Isso faz com que o núcleo de apoio do kirchnerismo não seja a camada mais popular da sociedade e, sim, uma classe média que sente que não tem os saberes apropriados para um mercado mais aberto e competitivo. Por isso, desejam e precisam do apoio do Estado.

Como vê o candidato que representa o kirchnerismo nestas eleições?

Daniel Scioli é um político muito mais liberal do que quer se mostrar. É originário de uma família abastada. Ele é o candidato que Cristina não queria. O kirchnerismo é tão personalista, focado nas figuras de Néstor e de Cristina, que não foi capaz de produzir um herdeiro.

O kirchnerismo acaba com o fim do mandato de Cristina?

Sim. Depois da crise de 2001, a reconstituição da autoridade do presidente foi muito forte. Tudo depende do presidente e governo federal tem muita força sobre as províncias e as prefeituras.

Se Scioli vencer, uma parte do kirchnerismo vai se converter em sciolismo. Assim como parte do kirchnerismo já foi um dia menemista e duhaldista. Scioli será uma guinada à moderação. Ele é mais Miami que Havana. É uma pessoa de centro-direita.

Se Macri ganhar, o kirchnerismo sobrevive?

Os kirchneristas chegaram a pensar que sim, que poderiam seguir controlando o peronismo. Mas não acredito. O kirchnerismo foi uma corrente política hegemônica de um consenso que segue sendo majoritário, mas que vai se modificar. A "chefa" se vai. Cristina será passado a partir de 11 de dezembro, porque estar na presidência é definitivamente importante.


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