Folha de S. Paulo


Empresário cubano que vive em Miami ajuda quem quer investir na ilha

Hugo Cancio, 51, que saiu de Cuba quando adolescente e consagrou-se como empresário nos EUA, passou a maior parte da vida fazendo lobby para reaproximar os dois países. Com a normalização das relações formalizada na semana passada, ele agora vive na ponte aérea entre Havana e Miami e se posiciona como figura incontornável para americanos interessados em investir na ilha.

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Saí de Cuba em 1980, por decisão da minha mãe, que buscava vida melhor para nossa família. Ela aproveitou uma brecha aberta naquela época por Fidel Castro.

Para que eu fosse considerado apto a emigrar, ela sugeriu que eu me declarasse homossexual. Na entrevista, os militares perguntaram: "passivo ou ativo?". Como eu não fazia ideia do que significava, respondi "as duas coisas".

Javier Galeano/Reuters Cancio
Hugo Cancio, empresário que saiu de Cuba quando jovem e que hoje investe na ilha
Hugo Cancio, empresário que saiu de Cuba quando jovem e que hoje investe na ilha

Dias depois, me colocaram a bordo de um iate de luxo de cubanos radicados nos EUA que vinham a Cuba buscar quem quisesse emigrar.

Minha mãe e minha irmã foram em outro barco e chegamos aos EUA sem nada. Meu pai só pôde se juntar a nós onze anos depois.

Estudei e tive todo tipo de emprego antes de abrir meus negócios. Em 1993, voltei a Cuba pela primeira vez. No ano seguinte, fui a convite do governo, que queria se aproximar dos cubanos nos EUA. Foi quando conheci Fidel.

Em 2003, Cuba me baniu de entrar na ilha por um ano porque critiquei publicamente coisas que eu achava erradas [uma onda de repressão contra dissidentes]. Decidi então ficar cinco anos sem voltar. Foi um dos períodos mais tristes da minha vida.

Houve outros, como quando minhas filhas ficavam de castigo na escola [em Miami] por me defender contra quem dizia que eu era comunista e agente dos Castros. O sequestro do menino Elián González [resgatado no mar ao tentar entrar nos EUA] também mexeu muito comigo, como pai.

DOSES DE MÚSICA

O primeiro passo para reaproximar meus países natal e adotivo era reconectar cubanos nos EUA com suas raízes. Sabia que o principal campo de batalha era Miami. Foram necessárias altas doses de música e cultura, coisas que promovo há mais de 20 anos, para reconciliar a comunidade. Podíamos discordar sobre Fidel, mas quando falávamos de Celia Cruz ou Silvio Rodríguez [artistas cubanos], compartilhávamos a mesma herança. Foi assim que surgiram pontes de entendimento que acabaram mudando corações e mentes da grande maioria dos cubanos em Miami.

Depois foi preciso convencer o governo cubano a mudar de atitude em relação aos emigrados. Isso ocorreu com a chegada de Raúl [Castro, que substituiu Fidel em 2008], que, sem minimizar de nenhuma maneira o trabalho de Fidel, trouxe nova visão.

Sou de um país lindo com uma gente linda que merece um futuro melhor, mas parte desse futuro ainda estava sujeito a que meu país adotivo também mudasse de posição.

Não votei em Obama na primeira vez porque pensei que não tinha experiência, mas ele acabou sendo fundamental.

Admiro Obama por ser sincero, honesto, carismático e íntegro. Admiro Fidel por sua tenacidade e espírito de luta. Conversei pessoalmente com ambos, mas não conheci Raúl.

FERIDAS

Por estar em contato com gente dos dois lados, eu tinha informação de que algo grande seria anunciado em dezembro de 2014, mas não imaginava a magnitude.

Caminhamos muito até chegar ao 17 de dezembro [dia do anúncio da normalização], mas o processo ainda será longo, já que as feridas remontam a bem antes de 1959.

Lembre-se que houve ocupação e guerra [na virada do século 19 para 20]. Após o triunfo da revolução cubana, os EUA aprofundaram esforços para interferir em Cuba.

Hoje, o mais urgente é remover o embargo desumano.

É claro que quero que os cubanos algum dia possam escolher seus governantes, mas nem por isso acho o sistema americano perfeito. Nos EUA, só faz política quem tem muitos recursos. O cargo de presidente é quase comprado.

Hoje tenho dois chapéus. O primeiro é o de um cubano que ama seu país e quer levar adiante um processo para deixar para trás velhos rancores. O segundo é o de empresário que tem interesses econômicos e torce para que a transição seja bem sucedida.

Para mim, fazer negócios em Cuba não é como fazê-lo em Oklahoma ou Oregon. É algo que faço pensando no bem estar das pessoas.

Hoje nenhuma empresa está tão bem posicionada como a minha para ajudar americanos a fazer negócios em Cuba. Temos experiência ímpar em investimento e trânsito no sistema socialista. Por isso tanta gente em turismo, telecomunicações e publicidade busca nosso know-how.

Países como o Brasil, que vinham fazendo negócios com Cuba há muito tempo, não precisam ficar preocupados. Cubanos nunca esquecem de seus velhos amigos.


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