Folha de S. Paulo


Professor conta como é lecionar Shakespeare na Palestina ocupada

Neil Hertz
Campus da Universidade Al-Quds, em Abu Dis, na Palestina, onde o britânico Tom Sperlinger deu aulas
Campus da Universidade Al-Quds, em Abu Dis, na Palestina, onde o britânico Tom Sperlinger deu aulas

Ensinar inglês e discutir os romances de Shakespeare em uma terra sem lei, onde bombas de gás explodem no campus universitário e os alunos relatam invasões noturnas de suas casas pelos soldados das forças de ocupação.

Essa foi, durante um semestre, a tarefa de um jovem professor britânico que, até então, se dedicara à educação de adultos e projetos de engajamento comunitário na Universidade de Bristol.

Neto de judeus que escaparam das atrocidades de Hitler na Segunda Guerra, Tom Sperlinger, 36, viveu cinco meses na Palestina em 2013. Deu um curso sobre Shakespeare e outro sobre contos ingleses dos séculos 19 e 20 na Universidade Al-Quds.

A experiência é o tema do primeiro livro de Sperlinger, "Romeo and Juliet in Palestine", que acaba de ser publicado no Reino Unido (ainda sem edição brasileira). O título (Romeu e Julieta na Palestina) pode ter várias leituras, mas o subtítulo é esclarecedor: dando aulas em território ocupado.

Nesta entrevista à Folha, realizada por e-mail, Sperlinger fala sobre o livro e seu trabalho.

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Arquivo pessoal
Tom Sperlinger, autor de
Tom Sperlinger, autor de "Romeo and Juliet in Palestine", livro lançado recentemente no Reino Unido

Folha - O que o senhor imaginava encontrar na Palestina?

Tom Sperlinger - Eu já tinha ido algumas vezes antes do semestre em que dei aulas. Tinha uma ideia do que iria encontrar, mas a vida na Palestina era inimaginável para mim. Mesmo vindo a conhecer bastante meus alunos na sala de aula, a vida deles fora da escola continuava quase inimaginável para mim.

O que o senhor efetivamente encontrou?

Vivi duas vidas na Palestina. Uma em Ramallah, onde eu morava, que é uma espécie de bolha –cheia de ocidentais, um lugar confortável e fácil para um estrangeiro viver. A minha outra vida foi no campus em Abu Dis, que é ao lado do muro: as paredes são a primeira coisa que você vê quando passa para fora dos portões do campus.

Abu Dis é uma área que está tecnicamente sob controle conjunto do governo de Israel e da Autoridade Palestina, o que significa que, na prática, acaba sendo uma espécie de território sem lei.

A Universidade Al-Quds vive sob intensa pressão. Mesmo assim, os estudantes e os funcionários mostram impressionante coragem –e bom humor– diante dos desafios que se lhes apresentam a cada dia.

Como era o local em que o senhor deu aulas?

Al-Quds é o nome árabe de Jerusalém. A universidade mantém um campus em Jerusalém e outro em Abu Dis. Isso complica um pouco seu status, pois não é uma instituição israelense, tampouco uma "estrangeira" (o status das demais universidades na Palestina). Dei um curso sobre Shakespeare e outro sobre contos dos séculos 19 e 20. Havia 40 alunos no curso shakespeariano e 30 no outro.

Qual a importância desse tipo de curso em uma região conflagrada como a Palestina?

No meu livro, cito Hannah Arendt, que disse: "Estamos sempre educando para um mundo desajustado –ou que caminha para isso". Esse é o objetivo da educação, ajudar-nos a entender melhor um mundo muito imperfeito e o nosso lugar nele, ajudar-nos a cumprir o que Paulo Freire chama de "vocação para ser mais completamente humanos".

Precisamos de educação para expandir nosso potencial individual. Ao mesmo tempo, se parcelas da humanidade são excluídas do processo educativo, nós todos perdemos o que eles sabem, o que eles entendem e o que experimentaram.

Seu livro conta algumas dessas experiências?
 
A maioria dos estudantes que conheci tinha histórias que, para mim, era dramáticas, mas, para eles, faziam parte do cotidiano. Na Palestina, a violência e a morte fazem parte do dia a dia.

O incidente mais chocante para mim –que eu conto no livro– foi o caso de uma aluna que, num exercício de redação, contou como seu pai foi sequestrado por soldados israelenses no meio da noite para ser usado como escudo humano durante uma operação na comunidade.

O senhor viveu momentos de perigo?

Nossas aulas foram interrompidas algumas vezes por causa de incidentes em Abu Dis. Algumas vezes, eram choques entre soldados israelenses e jovens locais, e os soldados acabavam jogando gás lacrimogêneo na área do campus. Outras vezes, eram disputas entre adolescentes da comunidade e estudantes da universidade –eventualmente, essas brigas aconteciam em áreas não policiadas.
 
O que é o seu livro?

É uma história sobre dar aulas, os desafios e a estranha alquimia que se desenrola em uma sala de aula quando o ensino funciona.
 
O que o senhor aprendeu com a experiência?

Acho que aprendi a ser ainda mais cético em relação ao poder, como ele é usado e as justificativas que são dadas para o exercício do poder, tanto em pequena escala, como numa sala de aula, quanto em larga escala, como em uma nação.

O senhor acredita que há esperança de paz na Palestina?

Sempre há esperança. Mas não sou otimista. A situação está se deteriorando por causa do ritmo de construção dos assentamentos de colonos israelenses nos territórios ocupados e por causa do endurecimento da política de Israel. O que me deixa otimista, ainda que de forma bastante limitada, é o sentimento de que a educação torna possível pequenas mudanças para indivíduos e pequenas comunidades.

ROMEO AND JULIET IN PALESTINE
QUANTO: US$ 16,95 NA AMAZON (157 PÁGS.)
AUTOR: TOM SPERLINGER
EDITORA: ZERO BOOKS


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