Folha de S. Paulo


Ataque contra negros em Charleston foi ato terrorista, diz especialista

Assim que surgiram as primeiras notícias sobre o massacre em uma igreja de Charleston (Carolina do Sul), nos EUA, teve início na imprensa americana –e nas redes sociais– um debate sobre como classificar o crime: a morte de nove negros, assassinados por um atirador branco, seria, ou não, um ato terrorista?

Para Fredrick Harris, diretor do centro de estudos sobre política e sociedade afro-americana da Universidade Columbia, a chacina é, sem dúvida, um ato terrorista.

"Quando falamos de questões raciais nos Estados Unidos, há uma negação coletiva sobre a história e sobre atos de discriminação. É, sim, um ato de terrorismo", diz em entrevista à Folha.

Autor do livro "Beyond Discrimination: Racial Discrimination in a Post-Racist Era" (Além da discriminação: a discriminação racial na era pós-racista, de 2013), Harris afirma que o crime em Charleston é resultado do legado racista dos EUA e não pode ser visto como um ato isolado do cenário político do país.

"Quando brancos se voltam contra negros, isso é visto como um ato individual, como se a ideologia do racismo e a política americana não tivessem nada a ver com a decisão de um homem entrar em uma igreja e matar negros na Carolina do Sul", afirma.

"É um ato de um indivíduo, mas parece ter sido influenciado por esse pensamento

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

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Folha - Há um acirramento da tensão racial nos Estados Unidos?

Fredrick Harris - Parece que sim, por várias razões, mas especialmente após os assassinatos de homens desarmados pela polícia. Desde a morte de Trayvon Martin [na Flórida, em 2012] , têm havido mais casos como esse. E acho que isso criou mais tensão, mais polarização racial nos EUA.

Além disso, a eleição de Barack Obama, negro, como presidente criou uma forte reação adversa no país. As duas coisas se combinam para criar essa tensão racial que vemos agora.

A tragédia em Charleston é resultado disso ou é uma ação individual e isolada?

Editoria de Arte/Folhapress

Esse é um dos legados da mentira da supremacia branca nos EUA, essa ideia de que é um ato individual. Quando os negros se rebelam, como aconteceu em Ferguson ou em Baltimore, a avaliação é que há algo errado com os negros e com a comunidade negra.

Quando brancos se voltam contra negros, isso é visto como um ato individual, como se a ideologia do racismo e a política americana não tivessem nada a ver com a decisão de um homem entrar em uma igreja e matar negros na Carolina do Sul.

O atirador disse: "Vocês estão estuprando nossas mulheres e tomando o controle de nosso país." E particularmente essa última frase é o que membros do Tea Party [a ala ultraconservadora do partido republicano] estavam dizendo ao Obama anos atrás.

Mas nós nunca vemos esses atos como parte do racismo branco nos EUA, negamos isso como uma força existente. É um ato de um indivíduo, mas parece ter sido influenciado por esse pensamento.

A governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, é do Tea Party. Você acha que isso fez alguma diferença?

As pessoas tentam desconectar a política de atos como o de Charleston. E para mim, isso é só uma forma de negação. A governadora falou emocionadamente sobre a tragédia, quase foi às lágrimas.

Apesar disso, nega-se a consequência ruim de visões raciais polarizadoras da direita americana, fica a impressão de que os políticos não têm nada a ver com isso. E, infelizmente, acho que poucos americanos vão ligar os pontos.

Há uma discussão em torno de como as pessoas estão classificando as mortes em Charleston. Alguns críticos apontam que há resistência em chamar o ato de terrorista. Qual a sua opinião?

A reação de que esse não é um ato terrorista é errada. Quando falamos de questões raciais nos Estados Unidos, há uma negação coletiva sobre a história e sobre atos de discriminação. É, sim, um ato de terrorismo.

Os bombardeios de Oklahoma [em 1995] foram vistos como um ato de terrorismo doméstico. E os responsáveis por ele também eram racistas, ainda que tenha sido um ato contra o governo.

Mas tudo isso é varrido para baixo do tapete, as pessoas não estão fazendo a ligação. Isso é um comportamento patológico, mas não vemos assim, vemos como um ato individual.

Você acha que os Estados Unidos são um país racista?

Sim, assim como o Brasil e a África do Sul também. A supremacia branca se manifesta de formas diferentes em diversos lugares.

Nos Estados Unidos, é um tipo de discriminação muito sofistica, o que eu chamo da mão oculta da desigualdade racial, práticas institucionais que perpetuam o desequilíbrio racial. Mas não é um racismo escancarado, não há leis segregacionistas.

No Brasil, por exemplo, não há o legado das leis de segregação, mas os pardos e negros são mais excluídos da sociedade.

Ter um presidente e secretários de Justiça negros gerou alguma mudança?

Acho que relevou o racismo profundo e enraizado na sociedade americana. Por outro lado, há uma percepção de que só porque você tem afro-americanos no governo, as coisas estão melhorando, e não é bem assim.

Essas pessoas têm de atuar com a lei e os costumes americanos, então isso restringe muito o que podem fazer. Mas, de maneira nenhuma, podem ser culpados por isso.

Saul Loeb-18.jun.15/AFP
Obama faz discurso sobre a chacina em igreja em Charleston
Obama faz discurso sobre a chacina em igreja em Charleston

Mas houve esforço do presidente para melhorar a situação da população negra?

A questão aqui é: ele fez o suficiente? Há muitas questões envolvidas, um Congresso hostil, dominado pelo partido republicano, que tentou de todos os jeitos parar os esforços do presidente.

Mas ele também não falou com frequência sobre o legado do racismo na sociedade americana e deu muito mais atenção para outros assuntos, especialmente os que interessam à coalizão que o elegeu, do que para esse tema.

Também não acho que ele foi articulado o suficiente ao falar sobre suas visões e o que poderia ser feito, que tipo de políticas deveríamos ter. Não há políticas concretas para lidar com a desigualdade estrutural que existe na sociedade e afeta desproporcionalmente os negros.

Para onde vamos daqui?

Esse é o título do último livro de Martin Luther King, "Where do We Go From Here: Chaos or Community?" [Para onde vamos daqui: caos ou comunidade, de 1967]. O que temos visto nos últimos anos é muito caos e pouca comunidade.

Honestamente, não sei para onde vamos. Mas me preocupa que estejamos vivendo em uma sociedade que desumaniza as pessoas. E acho que essa é uma questão maior e global.

Os casos recentes de violência policial chamaram a atenção para a questão. Isso ajuda?

Por quanto tempo mais precisamos chamar a atenção para isso? Tem sido um problema por gerações e gerações.

No Brasil, por exemplo, houve grande atenção internacional para a morte de jovens negros nas mãos de policiais no Rio e em São Paulo nos anos 1980 e 1990. Mas isso ainda é um problema.

Precisamos de mudanças estruturais na sociedade, dar mais oportunidade para as pessoas, mudar a cobertura da imprensa, que perpetua estereótipos. Não é só sobre mudar a visão das pessoas.

Mas é possível mudar a visão das pessoas?

Não precisamos mudar a mente das pessoas, mas proteger quem precisa de proteção e fazer com que os autores dos crimes, aqueles que perpetuam ideias racistas, sejam severamente punidos.


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