Folha de S. Paulo


Grupos russos financiam rebeldes na Ucrânia com doações on-line

O Batalhão Humanitário Novorossiya divulga em seu site na internet que pagou por um binóculo usado por rebeldes no leste da Ucrânia para localizar e destruir um veículo blindado. Para pedir doações, outro grupo, Save the Donbass, usa a foto de um morteiro inscrito com seu endereço eletrônico e os nomes de doadores. Ainda outro, Veche, afirma que sua missão é criar unidades "modernas, preparadas para o combate", para combater o governo central da Ucrânia.

Essas organizações fazem parte de uma campanha online que não oculta o fato de estar levantando fundos para a guerra no leste da Ucrânia, usando táticas comuns que têm o apoio pelo menos tácito do governo do presidente russo Vladimir Putin.

Embora frequentemente descreva sua missão como sendo humanitária, a maioria dos grupos endossa explicitamente a insurgência armada e promete ajudar a equipar os rebeldes nas duas regiões que estão ao cerne dos combates, Donetsk e Lugansk.

Um estudo feito pelo "New York Times" dos sites dos grupos, seus posts nas mídias sociais e outros registros descobriu que mais de 12 grupos na Rússia estão levantando fundos para os separatistas, contribuindo para um conflito que já deixou mais de 6.400 mortos e levou as relações da Rússia com o Ocidente para o nível mais tenso desde a Guerra Fria.

Os grupos usam as mídias sociais –incluindo o YouTube e a versão russa do Facebook– para direcionar doações por bancos estatais na Rússia e por um sistema privado de pagamento da empresa QIWI, filiada à Visa e que negocia suas ações na Nasdaq.

A maioria das doações parece vir da Rússia, mas, apesar de muitas das organizações serem alvos de sanções internacionais, elas também solicitam fundos do exterior, usando grandes instituições financeiras dos EUA e da Europa, incluindo bancos e empresas como Western Union e PayPal.

As transações podem gerar riscos legais para essas empresas, que são proibidas de fazer negócios com pessoas ou grupos na lista negra das sanções. Na realidade, porém, as sanções ajudaram a possibilitar um jogo de gato e rato em que os grupos de levantamento de fundos se modificam segundo as circunstâncias, mudando de nome e redirecionando doações a novas contas, para manter o dinheiro entrando.

Com a previsão de que a União Europeia vá renovar as sanções, Putin continua a insistir que os combatentes no leste da Ucrânia fazem parte de um movimento oposicionista nascido na própria Ucrânia, apesar das inúmeras evidências de que Moscou vem fornecendo armas e combatentes para os insurgentes. No final de maio, por exemplo, dois soldados russos foram capturados no campo de batalha e posteriormente foram acusados de terrorismo.

Nos últimos dias, novos sinais de que as tropas e os equipamentos militares russos na fronteira vêm aumentando, somados aos combates que deixaram pelo menos 19 mortos nos arredores de Donetsk, geraram temores de que o conflito que fervilha em fogo baixo esteja prestes a recrudescer.

Putin participou das negociações que resultaram em um cessar-fogo tênue em fevereiro e pediu aos dois lados que cheguem a um acordo político duradouro, chamado que lançou mais recentemente em seus encontros com autoridades italianas e o papa Francisco em Roma. Mas as autoridades da Ucrânia e outros países dizem que ele continua a alimentar o conflito, visando enfraquecer e desestabilizar o país vizinho.

A rede de levantamento de fundos é outra das ferramentas que o Kremlin vem empregando para isso. Não está claro qual é a extensão da rede nem quanto dinheiro flui por ela, mas, em publicações nas redes sociais, grupos separatistas identificados pelo "New York Times" alegam já ter levantado milhões de dólares.

A rede ostenta um elenco de personagens díspares que inclui Igor Girkin, bigodudo ex-oficial da inteligência militar russa visto como responsável por ter iniciado o levante e que usa o nome de guerra Igor Strelkov; o escritor dissidente e crítico de Putin Eduard Limonov, cujos seguidores neonacionalistas defendem a expansão territorial nas regiões etnicamente russas com muito mais vigor que o Kremlin de Putin; e uma ex-"ministra do Exterior" da República Popular de Donetsk, Yekaterina Gubareva, e seu marido, Pavel, russo étnico ucraniano e um dos mais conhecidos líderes separatistas no país.

Todos compartilham uma causa comum: a criação de uma região leal à Rússia, às vezes chamada de Donbass ou Novorossiya. Eles lançam apelos semelhantes à solidariedade étnica e política, com os combatentes fazendo oposição ao governo central em Kiev, e compartilham métodos de encaminhamento de dinheiro para atividades ilícitas que a internet deixou muitíssimo mais eficientes, segundo especialistas que monitoram os fluxos financeiros de grupos criminosos e terroristas.

"Grupos violentos que operam em zonas de combate e seus partidários no exterior vêm explorando os avanços nas tecnologias de comunicações e de serviços financeiros para angariar mais apoio popular e levantar fundos para suas causas", disse Howard Mendelsohn, ex-vice-secretário assistente do Tesouro e hoje diretor gerente do grupo Camstoll, uma firma de assessoria em Washington.

O fundo administrado por Gubareva e seu marido, o Batalhão Humanitário de Novorossiya, alega já ter levantado US$213 mil (cerca de R$650 mil) desde que foi fundado, em maio de 2014, pouco depois de os combates começaram.

Seu site na internet permite que os doadores direcionem suas contribuições a unidades milicianas específicas –incluindo a bateria de morteiros Buratino, cujo nome vem da versão russa de Pinóquio- -e se gaba de ter pago não apenas pelo binóculo usado na destruição do veículo blindado, mas também por luvas militares táticas, localizadores a laser, rádios e um carro usado pelos olheiros da bateria.

Pelo menos cinco das organizações pedem doações pelo PayPal, a empresa de pagamentos online sediada na Califórnia e hoje pertencente ao eBay. O PayPal já teve problemas legais no passado por processar pagamentos a entidades no Irã, Sudão e Cuba, tendo recentemente pago quase US$7,7 milhões (cerca de R$ 23 milhões) em multas em um acordo com o Departamento do Tesouro.

Perguntada sobre as contas ligadas à Ucrânia –identificadas por endereços de e-mail na Rússia–, uma porta-voz do PayPal, Sarah Frueh, disse que nenhuma das contas é válida. Ela se negou a responder a outras perguntas.

O uso amplo da QIWI criou riscos potenciais para a Visa, sua parceira. Quase todos os grupos de levantamento de fundos solicitam doações através da QIWI, empresa de pagamentos virtuais fundada em 2004 e que, como muitas outras empresas russas, mais tarde foi constituída no Chipre.

A QIWI fornece a consumidores na Rússia (e em outros países, cada vez mais) diversas maneiras de fazer pagamentos online ou através de uma rede de dezenas de milhares de terminais que funcionam como caixas automáticos invertidos: o usuário deposita dinheiro neles e então paga empresas ou outras entidades participantes.

Os usuários também podem transferir dinheiro para pessoas físicas ou organizações beneficentes, desde que possuam contas ligadas a números telefônicos ativos. A parceria mantida com a Visa desde 2012 permite aos usuários da QIWI empregar um cartão de crédito QIWI-Visa para pagar firmas ou entidades que não integram a rede da QIWI.

Gleb Garanich - 2.mar.15/Reuters
Comboio de tanques se desloca em zona de conflito no leste da Ucrânia
Comboio de tanques se desloca em zona de conflito no leste da Ucrânia

O sistema ganhou aceitação enorme, sendo usado por 17 milhões de russos, e ao mesmo tempo vem se desviando de problemas legais. Seus terminais e cartões de crédito –somados ao fato de as transações não serem identificadas, como requer a lei russa desde o ano passado– podem facilmente ser explorados para fazer transferências de dinheiro procedente de atividades ilícitas, desde o tráfico de drogas até a sonegação de impostos.

Em uma declaração recente feita à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA, exigida porque suas ações são negociadas no Nasdaq, a QIWI disse que seu sistema "continua suscetível a utilizações potencialmente ilegais ou impróprias", como lavagem de dinheiro do crime organizado ou outros atores ilícitos, incluindo aqueles submetidos a sanções pelo Ocidente devido às suas atividades na Ucrânia.

Em fevereiro a empresa apresentou uma emenda à sua declaração, dizendo que a polícia realizou uma investigação em seu escritório em Moscou envolvendo "um número restrito de clientes". Mas não deu maiores informações.

Representantes da Visa dizem não acreditar que a sua empresa tenha processado doações às organizações estudadas.

Em entrevista telefônica, o executivo-chefe da QIWI, Sergei Solonin, informou que a a empresa bloqueou algumas das contas identificadas pelo NYT no ano passado porque estavam participando de atividades de levantamento de fundos proibidas pela política da empresa. Por exemplo, a QIWI bloqueia o uso de seu sistema para o levantamento de fundos para fins políticos.

Solonin disse que outras contas foram bloqueadas depois de o NYT as ter levado à atenção da QIWI. Até outubro, um grupo, Tricolor, estava publicando informações de doações feitas por meio de contas na QIWI, mas, citando as leis de confidencialidade financeira russas, Solonin não revelou se uma das contas fechadas posteriormente era do grupo.

Após a entrevista, vários grupos postaram em seus sites que suas contas na QIWI tinham sido bloqueadas, tirando-as do sistema como opção para pagamentos.

Mas, para ressaltar como pode ser complicado limitar as atividades de levantamento de fundos dos grupos, vários deles redirecionaram dinheiro a contas novas. No último 20 de abril um grupo chamado Batman observou em sua página de mídias sociais que todas suas contas menos a do Sberbank foram bloqueadas. Em 18 de maio, porém, o grupo atualizou a página, na qual constava um novo número de conta na QIWI e um apelo: "Donbass precisa de sua ajuda!".

Tradução de CLARA ALLAIN


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