Folha de S. Paulo


Mulheres na guerra lutam para se adaptar ao mundo masculino

Os homens do pelotão, em plena atividade diária, de vez em quando precisavam de um descanso, e, para desanuviar, um deles começou a imitar o jeito de andar da chefe.

Cabeça baixa, cotovelos abrindo e fechando, deslocando-se para a frente com pernadas rápidas, e logo todos os soldados se puseram a rir e sugerir aos gritos algumas melhoras na performance: "Balança mais os braços!", "Joga as pernas para a frente com mais força!", "Não se esqueça de fazer cara de quem vai dar um soco em alguém!"

O "passo do elefantinho", como diziam, era somente um modo de aplacar a tensão dos dias compridos na província do sul de Kandahar.

A líder do pelotão, no começo, também achou graça na brincadeira. "O passo do elefantinho me pegou, era igual ao meu jeito de andar, mesmo!", declarou numa entrevista recente a tenente Courtney Wilson, que serviu no Afeganistão de 2010 a 2011.

James Rajotte - 1º.nov.2014/The New York Times
Courtney Wilson relaxa em um parque em Madri após encerrar contrato com o Exército americano
Courtney Wilson relaxa em um parque em Madri após encerrar contrato com o Exército americano

Mas depois, na sua cama, ela duvidava: "Será que estavam só se divertindo, ou não me aguentam mais? Essa era a parte mais difícil. Começava a me sentir um pouco como se fosse eu contra eles, achava que não gostavam de mim. Não sabia se estavam me incluindo no grupo, ou, ao contrário, me desrespeitando totalmente."

Nos meses que se seguiram, esse sentimento de exclusão se aprofundaria em depressão. Na metade do seu tempo de serviço, mandou um e-mail para uma amiga conterrânea dizendo que, decididamente, não iria se matar.

NO MUNDO DOS HOMENS

Um dos maiores ajustes que as forças dos EUA tentaram fazer durante as guerras do Iraque e do Afeganistão foi cultural –a integração das mulheres num mundo intensamente masculino.

As mulheres totalizavam 15% da força durante essas duas guerras, comparados aos 7% na Guerra do Golfo de 1991 –além de passarem, mais do que nunca, por muitos combates.

Assim mesmo, apesar de as mulheres se distinguirem como líderes e soldados alistados, muitas delas se descrevem em luta com o sentimento de não pertencimento.

Para os homens, os laços de amizade incondicionais entre companheiros de combate –aquela energia, a força vital da cultura militar masculina– são um apoio. Mas em dezenas de entrevistas com mulheres que serviram no Exército, elas disseram inúmeras vezes que esse profundo apoio vital não se manifestava nelas.

"Não é justo dizer que o serviço é mais ou menos estressante baseado no gênero. É estressante para todos", diz Lisbeth Prifogle, uma oficial de suprimentos que pertencia ao grupo 16 de aviação da Marinha em Al Asad, Iraque, em 2005. "Mas há um monte de coisinhas com as quais temos que lidar e que os homens nem imaginam, porque já fazem parte do mundo deles."

O angústia psíquica é mensurável. Mais do que 38% das mulheres relatam sintomas depressivos depois do período de serviço, contra 32%, de acordo com um estudo publicado pelo Journal of General Internal Medicine.

As mulheres são dez vezes mais propensas do que os homens a relatar assédio sexual sério.

O suicídio é um enorme problema dentro do Exército, principalmente no caso de homens brancos. Documentos do Exército, porém, mostram que o número de suicídios entre mulheres triplica durante o serviço, de 4 entre 100.000 (suicídios em casa) para 14 entre 100.000 -entre os homens, o aumento é mais modesto.

"Claramente esses dados pedem explicação sobre o aparente surto de desânimo e alienação entre tantas mulheres durante o período de serviço", diz Dr. Loree K Sutton, uma general de brigada, psiquiatra e comissária do Escritório da Prefeitura de Nova York para Assuntos de Veteranos.

"Esse é um esforço crítico para nós e precisa ir além de fatores individuais e ser considerado dentro de dinâmicas de grupo."

COMANDO DO PELOTÃO

Qualquer insegurança que Wilson sentisse durante o serviço era sobrepujada por um estouro de trabalho empurrando-a para frente.

Ela chegou ao Afeganistão em 1º de Abril de 2010, pousando no aeroporto de Kandahar– uma área empoeirada, caótica, "o que me fez lembrar daquelas cidades pós-apocalípticas do Exterminador do Futuro e Matrix", escreveu ela num e-mail pra uma amiga.

Logo, a tentente estaria liderando um pelotão no batalhão de Engenharia 864 em projetos fora dos limites do campo na região de Kandahar.

A sua equipe lidava com material pesado: construía torres de segurança, barreiras e cercados. Consertava, mantinha estradas e edifícios, e aplainava terrenos para equipes de construção.

"Tente dirigir caminhões de reboque de 40 pés [13 metros], cheios de equipamento por essas ruas de terra, estreitas e cheias de casas de barro sem arruinar nenhuma", dizia o tenente Nicholas LaPonte, que depois herdou seu posto.

"Comandar o pelotão", dizia ele, "é ficar acordado 20 horas por dia, planejando missões, e andando de lá para cá o tempo todo."

INSEGURANÇAS MENTAIS

Ao procurar entender as taxas de depressão e suicídio em ascensão entre as mulheres alistadas, os cientistas sociais começaram a pesquisar outros grupos às margens de alguma outra cultura, como negros na Ivy League [liga esportiva formada por oito das tradicionais universidades do nordeste dos EUA], brancos frequentando escolas não brancas ou mulheres em profissões masculinas.

E descobriram que os custos mentais sofridos pelas minorias eram semelhantes.

Os membros de tais grupos relatam tantos insultos e maus dias, como os membros das culturas dominantes. Mas, comparados com a maioria, sentem-se muito mais inseguros.

"Toda coisa desagradável que acontece, eles interpretam como sinal de não pertencimento" diz Gregory M Walton, professor-assistente de psicologia na Universidade Stanford.

"Esta incerteza pode se tornar uma indicação bem provável de futuros problemas mentais durante o serviço", acrescenta.

Uma equipe liderada por Amy Street, do Centro Nacional para Estresse Pós-Traumático, e Ronald Kessler, da Universidade Harvard, procurou nos números do Exército por fatores que pudessem explicar o aumento nas taxas de suicídio.

Na revista Psychological Medicine, uma equipe de pesquisa descartaram algumas das explicações mais plausíveis: as mulheres não entravam no Exército com mais problemas psicológicos do que os homens. Os assédios sexuais relatados não explicavam a taxa elevada. E a proporção de mulheres numa dada unidade não parecia fazer diferença. A procura pelas respostas continuou.

Os pesquisadores então se perguntaram o quanto "de todas essas pequenas coisas" –as diferenças inerentes àqueles que estão à margem de uma cultura– afetam o ânimo de uma pessoa, especialmente estando sob a pressão do combate.

MENSAGENS AMBÍGUAS

Mulheres veteranas informaram em entrevistas que as expectativas dos soldados homens eram claras: façam a parte de vocês, mantenham a calma, protejam seu parceiro –e está tudo certo.

As mulheres, no entanto, diziam receber mensagens ambíguas. O Exército proíbe a maioria das joias e maquiagem, mas é institucionalmente um grande protetor das mulheres, ao menos no campo de batalha.

"Você é tratada como uma garota e não pode ser realmente uma mulher– é isso que sentimos" diz Wilson.

Misturadas ao estranho sentimento de "deslocadas", havia sempre as entrelinhas sexuais. Muitas mulheres diziam que, à noite, na base, não podiam ir ao banheiro sem uma companhia.

Wilson contou que um oficial não comissionado na sua unidade fazia piadas sexuais que a deixavam tão nervosa que ela pensou em delatá-lo. Decidiu que não o faria, mas o desconforto permaneceu.

De fato, qualquer relação com um soldado é o bastante para alimentar fofocas semelhantes às do colégio, dizem as veteranas.

"O que tornava isso insuportável eram os momentos em que você via que não podia se ligar de algum modo aos homens, mesmo depois de um dia puxado –e a maioria de dias era puxado– por causa das tais fofocas", diz Susane Rossignol, que serviu em Baiji, no Iraque, entre 2004 e 2005.

As mulheres diziam que formar laços próximos, colegiais mesmo, com companheiros soldados não era fácil. "É um terreno minado, você tem que aprender a lidar com soldados, se aproximar deles como irmãs, e não como um potencial par romântico", diz Anne, que serviu duas vezes no Iraque e pediu para omitirem seu nome.

"Quando você consegue essa proeza, farão qualquer coisa por você. Mas há tantas mulheres entrando para o Exército, e tão moças, que não sabem como se comportar nesse caso."

Algumas mulheres encontravam companhia em outras mulheres. "Eu tive sorte", diz Elizabeth Verardo, que pilotava helicópteros Apache e serviu duas vezes no Afeganistão. "Eu tinha um grupo de mulheres do mesmo nível. Éramos amigas e vivíamos juntas o tempo todo."

ANSIEDADE PROLONGADA

Fora do bunker, fora do Afeganistão, Wilson começou a sofrer de ataques de pânico, crises de ansiedade que apertavam sua garganta. "Cheguei a não conseguir respirar, a quase desmaiar" diz ela.

Jack Daniels e Coca Cola diminuíam a ansiedade, mas era um alívio que durava pouco. Ela experimentou monitoramento de ondas cerebrais, oração, meditação e medicamentos psiquiátricos.

Finalmente, com relutância, começou uma terapia comum de conversa com um psicólogo na Base Militar de Fort Hood, no Texas.

"Ela realmente se esforçava para se conectar com outras pessoas, e o problema vinha, em parte, por ela estar tentando ser alguém que não era", diz Roger Belisle, psicólogo clínico no Centro de Resiliência e Restabelecimento de Fort Hood.

Esse tipo de pessoa –de altas expectativas, dura com os outros e mais dura ainda consigo própria, relutante em pedir ajuda– é um tipo de militar de perfil complicado até para os homens, mas muito comum. Para mulheres é um convite ao isolamento, dizem os psiquiatras.

Como Wilson, muitas mulheres no Exército não tiveram este tipo de amor, pelo menos quando estavam em serviço. "É como se eu tivesse toda a parte desagradável do trabalho e nenhuma parte boa, como a amizade", afirma Wilson.

Sem servir, ela está agora em contato próximo com os amigos, pais e irmão. Quando seu humor estremece, ela telefona para um deles. "Hora de terapia", avisa.

Na sessão final de terapia, a terapeuta Belisle, perguntou: "Qual é a sua paixão, no momento?"

"Viajar", respondeu ela. "Então viaje."

O contrato de Wilson com o Exército acabou em agosto. No dia 29 de outubro, depois de visitar seu irmão e os pais, ela voou para Madri. Estava determinada a visitar a Índia e a África, antes de voltar. Ou não.

Desta vez, a missão era aberta e os objetivos muito mais difíceis de serem medidos.


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