Folha de S. Paulo


Ex-criança-soldado, homem cria ONG para salvar meninos em Moçambique

RESUMO Dois anos após a independência de Portugal, um ataque da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), contrária ao novo governo, deu início a uma guerra civil em Moçambique (1977-1992). Mais de 96 mil pessoas lutaram no conflito, sendo que ao menos 30% eram crianças-soldados, utilizadas pelos dois lados.

O mecânico Albino Forquilha, 47, tinha 11 anos quando foi sequestrado pela Renamo e se tornou parte da guerra. Leia abaixo o depoimento dele.

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Nós, crianças na época, éramos treinados para agir como uma máquina de guerra. Eu tinha 11 anos quando comecei a matar para não morrer. Morria-se muito em Moçambique.

Eu morava e estudava na província de Manica, na fronteira com o Zimbábue. Moçambique havia acabado de conquistar a independência de Portugal (1975), mas a paz durou pouco.

Julio Dengucho/Folhapress
Albino Forquilha, que foi criança-soldado em Moçambique, lidera uma ONG que resgata meninos
Albino Forquilha, que foi criança-soldado em Moçambique, lidera uma ONG que resgata meninos

Os rebeldes da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) treinavam no país vizinho, ainda colonizado, e se preparavam para atacar. O conflito começou na minha região e se espalhou por todo o país durante 16 anos.

Eu dormia com um revólver embaixo do travesseiro no internato onde estudava. Era uma zona de guerra. Cada estudante tinha uma arma para se defender contra os ataques, que não eram raros.

Fui sequestrado no primeiro dia das férias de 1980. Eu e mais dois amigos estávamos em um ônibus para voltar para casa, onde eu morava com a minha mãe e mais seis irmãos –meu pai morreu antes mesmo da guerra.

Mas não cheguei. Quando descemos, fomos recrutados pela Renamo. Nos obrigaram a carregar as bagagens e andamos toda a noite até chegarmos a uma base militar, no meio do mato.

Aos 11 anos fui treinado para disparar e matar. E matei muitas pessoas. Se eu não matasse, seria o primeiro a morrer. Essa era a regra para mim e as mais de 600 crianças que também estavam naquele lugar.

CONCENTRAÇÃO

Conheci a parte mais cruel da guerra dias depois. Quando alguém tentava fugir e era capturado, havia uma concentração.

Os homens faziam uma roda, colocavam o fugitivo no centro e chamavam um miúdo [criança], que tivesse entre 11 e 13 anos, para matar essa pessoa.

O aviso era que naquele local não se podia fugir nem descumprir ordens.

Se a criança se recusasse a atirar, era o fugitivo que a matava antes de o comandante escolher uma outra criança para o serviço. Não tinha como fugir.

As brincadeiras comuns na idade desapareceram. Vi meninos matarem os próprios pais, incendiarem casas e "pilarem" bebês [matar em pilões]. Todos os dias perdiam-se vidas.

As meninas eram cozinheiras e escravas sexuais dos rebeldes. Nós, homens, sofremos, mas sempre tive a sensação de que as mulheres sofriam mais.

Ali era a lei do mais forte. Respeitava-se muito pouco a dignidade e a vida humana. Éramos crianças que não faziam ideia do motivo da guerra.

LIBERDADE

Após 90 dias como recruta, o Exército do governo invadiu a base e foi tiro para todo lado. Corri durante quatro horas sem saber a direção.

Quando estava longe, fui levado por um homem a um quartel oficial da Frelimo (partido Frente de Libertação de Moçambique, que está no poder desde a independência do país).

Lá me interrogaram durante dois dias para saber todo o plano dos rebeldes.

Minha mãe não acreditava mais que eu estava vivo quando me levaram para casa. Lembro dela chorando e me abraçando. Eu também chorei muito. Ninguém mais contava que eu ia aparecer.

Por muito tempo tive pesadelos com tiros perfurando o meu corpo. Na guerra, os dois lados usavam crianças como soldados.

O conflito acabou em 1992, eu já era adulto. Comecei a trabalhar em uma campanha para ajudar crianças-soldados a terem vida de novo. Buscávamos suas famílias, abrigos para os órfãos e escolas.

Em 1995, criei uma ONG que seguia os mesmos caminhos. Ajudamos mais de mil crianças em cinco províncias.

Curandeiros também foram essenciais para amenizar os traumas. Em Moçambique, acredita-se que pessoas que matam têm espíritos maus. Com o ritual de purificação, elas foram recebidas novamente pela sociedade.

Hoje, com essa população já adulta, o nosso foco é auxiliar na busca de um emprego, já que essas pessoas pararam de estudar para aprender a matar.

Ainda há inúmeras armas escondidas em Moçambique. Temos uma regra de troca entre a sociedade: uma arma equivale a uma ajuda.

Dependendo da quantidade que é entregue à ONG, damos desde cadernos até máquinas de costura.

Mais de 26 mil famílias já foram ajudadas. Além de resgatar a economia da região, o objetivo é que novos conflitos civis sejam evitados.

Faço tudo isso para que nenhuma criança mais passe pelo que eu passei em Moçambique.


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