Folha de S. Paulo


"Estamos acabados", diz soldado sírio antes de cidade ser tomada pelo EI

O soldado do Exército sírio servira em Palmira por muito tempo, mas estava saindo de licença quando ouviu dizer que os militantes do Estado Islâmico haviam atacado uma vila ao nordeste da cidade desértica, matando dezenas de seus companheiros. Nervoso, começou a mandar mensagens de texto tentando encontrá-los. Ninguém respondeu.

Ele compartilhou sua ansiedade, na semana passada, escrevendo uma série de textos que começou a montar como um grande quebra-cabeças, juntando devagar pedaços da história dos sobreviventes do massacre.

Welayat Homs/AFP
Imagem retirada de vídeo mostra pessoas caminhando em uma rua de Palmira, supostamente depois dos militantes tomarem a cidade milenar
Imagem de vídeo mostra pessoas em uma rua de Palmira, supostamente depois de ser tomada

Soldados lhe contaram que a munição havia acabado. Um oficial mandou mensagem de rádio para o quartel: "Estamos acabados". O pior de tudo, disse o soldado, foi a foto que lhe mostraram do corpo decapitado de uma amiga, filha de um general sírio de apenas 19 anos.

Em apenas alguns dias daquela semana, o Estado Islâmico tomou com aparente facilidade as cidades de Ramadi, no Iraque, e Palmira, na Síria, nos dois casos parecendo surgir do nada para eliminar as forças do governo. Na quinta feira (14), os militantes estavam a postos, consolidando seu ataque e executando pessoas que tivessem alguma ligação com a antiga ordem.

No entanto, um olhar mais atento às duas batalhas mostra que o grupo segue uma estratégia de longo prazo, e em ambos os casos escolhendo o momento propício, tomando territórios principalmente de outros grupos insurgentes. Então, depois que anos de guerra, os atritos e a corrupção deixaram as forças do governo desmoralizadas, principalmente na Siria, eles atacam-nas.

Palmira era uma cidade tribal sunita, onde uma rebelião local fora vencida logo no começo da guerra e onde as relações entre os moradores e as forças de segurança eram complexas. Um jovem oficial do coração de Alawite e que servia lá em Palmira havia confessado um ano antes que não sentia nenhuma conexão com a população e temia que os moradores o matassem na primeira oportunidade que tivessem.

Ramadi,a capital da província de Anbar, o centro palpitante sunita do Iraque, também dividia suas lealdades.

Esses problemas eram evidentes em Palmira bem antes e durante o ataque de quarta-feira (13). Os moradores se viram presos no meio do mais recente ataque do Estado Islâmico e do que parecia uma reação morna do governo. As cenas de caos que ocorreram desmentiam a afirmação da mídia estatal de que as forças do governo haviam se retirado só depois de deixar todas as famílias em segurança.

Os moradores, divididos entre partidários e opositores do ditador Bashar al-Assad, descreveram a fuga de oficiais, que deixaram para trás os civis e recrutas para que se virassem sozinhos. Um dono de uma loja contou que viu a milícia pró governo correndo atabalhoadamente pelos quintais e jardins, sem saber direito onde se esconder. "Traição", foi como classificou.

Moradores filmaram os ataques aéreos que se aproximaram da cidadela medieval e se perguntavam por que os inimigos não foram bombardeados antes, seja pelo seu governo ou pela coalizão liderada pelos norte-americanos para enfrentá-los. Enquanto isso, os militantes atravessavam quilômetros de estradas desobstruídas do deserto.

Mas, o mais importante, disseram os moradores, é que haviam perdido a fé na proteção que o governo poderia dar até mesmo aos seus próprios aliados. Na quinta-feira (14), depois que as tropas do EI tomaram a cidade e começaram a executar as pessoas que consideravam próximas ao governo, muitos moradores se escondiam, acovardados em suas casas e porões, com medo tanto dos militantes nas ruas, quanto dos ataques aéreos e bombardeios do próprio governo.

Alguns achavam perigoso, ameaçador, que a mídia noticiosa do estado declarasse erradamente que a maioria dos civis havia sido retirada. Talvez usassem isso como desculpa para aumentar os ataques aéreos.

Alguns apontaram o fato da imprensa estatal ter dito que os civis foram retirados como uma "permissão" para aumentar os ataques aéreos.

"Posso prever o regime bombardeando a cidade massivamente, especialmente depois da baixa enorme que teve de soldados em terra", disse Khaled al-Homsi, um membro do comitê que organizou protestos contra o governo em 2011, em Palmira, antes que alguém sonhasse com uma guerra civil total, ainda menos contra um grupo como o Estado Islâmico.

"Os civis estão aterrorizados", disse ele. "A única padaria é controlada pelo EI. E o exército está bombardeando para todos os lados, de maneira randômica".

MEDO DA VINGANÇA

Homsi, 32, um ex-funcionário de hotel, que usa um nome falso por segurança, disse estar nervoso, pois os militantes com certeza viriam se vingar dele e de outros ativistas que se opunham a eles e ao governo.

"Fico feliz que Palmira foi liberada do regime, mas triste por vê-la sob o controle de Daesh", disse, usando o acrônimo em árabe do Estado Islâmico. "Do meu ponto de vista, como um ativista, não foi uma liberação."

Numa rara visita em tempos de guerra a Palmira, há um ano, repórteres do "New York Times" encontraram uma ampla variedade de pessoas, com quem mantiveram contato. Recentemente, eles fizeram um panorama do caos, das emoções e das incertezas nascidos com a tomada de Palmira.

Khalil al-Hariri, um arqueólogo que tinge seu cabelo de preto no tom de graxa de sapato, fugiu da sua casa, que fica ao norte da cidade e que se tornou o front da guerra. Enquanto isso, seus companheiros se apressaram em separar e salvar artefatos antigos do museu.

Christophe Charon-13.jan.2009/AFP
Vista aérea de uma parte antiga da cidade de Palmira, na Síria, em foto de 2009; moradores relatam pânico de ver cidade ser tomada
Vista aérea de uma parte antiga da cidade de Palmira, na Síria, em foto de 2009; moradores relatam pânico de ver cidade ser tomada

Nas poucas ruas de comércio de Palmira, as portas de metal se fechavam, acabando com negócios como o Café Zenobia, batizado com o nome de uma rainha lendária da antiga Palmira.

Omar, um ativista, começou a apagar os arquivos de computador que os militantes pudessem achar incriminadores contra seu amigo Homsi.

Homsi afirmou que nada tinha a esconder, a não ser os seus cigarros, numa alusão irônica à proibição do fumo pelo Estado Islâmico.

Ahmed, dono de uma loja de antiguidades perto do museu, disse, na quarta-feira (13), que sua família havia feito as malas para deixar a cidade. Contudo, disse ele, "o governo não permite [que saiamos]".

Esperando chegar à Palmira com reforços, o soldado de 27 anos que vem de uma família sunita mandou uma foto dele, "talvez a última", avisou. Mas as estradas estavam bloqueadas. Um primo dele que serve o Exército em Palmira respondeu: "fique onde está. Deus te ama." O soldado pediu para não ser identificado temendo pela segurança dele e de sua família.

Depois que os militantes tomaram o controle, Hariri, o arqueólogo, contatado por telefone, disse que conseguira sair com mais quatro pessoas. Contudo, acrescentou, "a maioria dos civis ainda está lá". Ele então fez uma pausa. "O que posso dizer? A situação está péssima".

QUERIA UMA VIDA NORMAL...

Outro comerciante gaguejava de ódio: "isso foi culpa do Exército". Ele estava fora da cidade na hora do ataque e escapou, mas não conseguiu tirar os pais de lá.

Seus pais contaram que os militantes fizeram uma chamada dos minaretes para que as pessoas entregassem quaisquer soldados ou funcionários do governo. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, militantes andavam pelas ruas da cidade oferecendo seus serviços. "Estão até distribuindo pão, valha-nos Deus!", disse o comerciante.

Na quinta-feira à noite, várias dezenas de pessoas haviam sido executadas publicamente, contaram os moradores.

Para Homsi, os acontecimentos do dia deram-lhe nova força para se revoltar outra vez. "Todos nós vamos assistir e confrontar a destruição da história e da herança da cidade. A revolução foi e continuará sendo a minha vida. Não aceitaremos a opressão de ninguém."

Quanto ao soldado, ele já atravessara batalhas sangrentas, mas nenhuma o abalara tanto como a morte de seus companheiros (35 soldados foram enterrados na capital provincial de Homs, somente na quinta-feira, como foi relatado por um morador que mora perto do hospital).

" Eu gostaria de não ser um soldado, mas um civil vivendo uma vida normal, casado, com filhos", confessou na quarta-feira. A situação dele, disse, o fazia lembrar de uma frase do amado poeta damasceno Nizar Qabbani: "amai-me...longe das terras de opressão e repressão, longe de nossa cidade que já sofreu tantas mortes."

Dali, o soldado saiu andando em direção ao front. Não recebemos mais nenhuma mensagem dele.

Tradução de NINA HORTA


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