Folha de S. Paulo


Ex-presos de Guantánamo protestam por melhor tratamento no Uruguai

A poucos metros das três barracas armadas diante da Embaixada dos EUA em Montevidéu, um homem com protetor de ouvido lança um forte jato d'água sobre a grade em torno do prédio. O barulho ensurdecedor começa cedo e só para no final do dia.

"Não sei se fazem isso por nossa causa, mas não me incomoda. Em Guantánamo havia barulho toda hora", diz em voz alta e sorrindo o sírio Ali Shaaban, 33, um dos seis ex-prisioneiros recebidos pelo Uruguai em dezembro passado, após 13 anos preso como "combatente inimigo".

Desde 24 de abril, Shaaban e outros quatro ex-detentos da prisão americana incrustada em Cuba enfrentam o vento frio que sopra do rio da Prata para reclamar contra o tratamento no Uruguai.

Na lista de reclamações, aparecem a falta de moradias individuais, ajuda financeira insuficiente e indefinição para a reunificação familiar. "Cinco meses é pouco tempo para se adaptar, mas é muito tempo para não ter nada estabelecido", diz.

Desde que chegou ao Uruguai diretamente de Guantánamo, o grupo vive em uma casa cedida por uma central sindical ligada ao ex-presidente José "Pepe" Mujica.

Como refugiados, passaram a ter aulas de espanhol e a receber US$ 560 (R$ 1.678) por mês (o salário mínimo uruguaio é de US$ 380).

Nicolás Celaya/Xinhua
Abdul Hadi Faraj (esq.), Abdul Bin Mohammed Abis Ourgy (centro) e Ali Shabaan rezam durante protesto em frente à Embaixada dos EUA
Abdul Hadi Faraj (esq.), Abdul Bin Mohammed Abis Ourgy (centro) e Ali Shabaan rezam durante protesto em frente à Embaixada dos EUA

Com o tempo, vieram problemas de convivência. O tunisiano Abdul Ourgy e o palestino Mohammed Tahamatan chegaram a trocar a casa por um hotel por algumas semanas após se desentender com os demais, todos sírios. Voltaram à casa supostamente por falta de dinheiro.

"Queria trazer meus familiares, mas, nessas condições, mal consigo me sustentar", disse Shaaban. Ele mencionou parentes refugiados na Jordânia e na Síria.

Apesar do acampamento diante da embaixada, o Departamento de Estado disse que não fará nada a respeito. Pelo acordo bilateral, é o país anfitrião que se encarrega da adaptação dos refugiados.

O governo uruguaio destacou o funcionário Christian Mirza para negociar com os ex-presos. Sem dar detalhes, disse na semana passada que "vamos na direção correta".
Inicialmente, o Uruguai ofereceu mais um ano de ajuda econômica, mas só o palestino, único que não está no protesto, assinou a proposta.

VIZINHANÇA

Nos dias em que a Folha acompanhou o protesto, os manifestantes já pareciam incorporados à paisagem.

No gramado onde estão as barracas, vizinhos levam cachorros para correr enquanto simpatizantes trazem comida e presentes, como um dicionário espanhol-árabe.

Após a primeira semana, a presença de jornalistas já é bem menor, em parte porque os refugiados só aceitam entrevistas se for para criticar as dificuldades no Uruguai.

Em conversas informais, o assunto recorrente é futebol. Ao descobrir que o repórter é brasileiro, o tunisiano Ourgy diz, sem cerimônia, que prefere Maradona a Pelé: "Ele criticou Guantánamo".

Ninguém fala em detalhes sobre os anos em Guantánamo ou o momento da captura. Assim, a principal fonte de informação são os prontuários da inteligência americana vazados na internet.

Ali, o sírio Shaaban aparece como ex-membro de uma milícia islâmica contrária ao ditador Bashar al-Assad. Em 2000, aos 18 anos, foi enviado ao Afeganistão, então principal base da Al Qaeda, de Osama bin Laden.

No final de 2001, ao tentar escapar do ataque americano iniciado dois meses antes, foi preso no Paquistão e entregue aos EUA. Em depoimento, disse ter sido treinado para usar rifles AK-47.

Shaaban e os demais foram classificados como de baixa periculosidade e liberados.

Barack Obama prometeu, em sua primeira campanha presidencial, fechar Guantánamo, aberta após o 11 de Setembro e criticada pela prática de tortura e indefinição jurídica dos detidos.

Mas há ainda 122 prisioneiros ali.


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