Folha de S. Paulo


Soldados israelenses põem em dúvida legalidade de táticas militares em Gaza

Os depoimentos dados por mais de 60 soldados israelenses que combateram na guerra do ano passado na faixa de Gaza levantaram sérias dúvidas quanto à possibilidade de as táticas usadas por Israel terem infringido sua obrigação, segundo as leis internacionais, de distinguir e proteger civis.

Reunidas pelo grupo de defesa dos direitos humanos Rompendo o Silêncio, as alegações estão contidas em dezenas de entrevistas com combatentes israelenses, além de militares que serviram em centros de comando e salas de ataque, sendo um quarto deles oficiais de patentes que chegam até a de major.

Elas incluem alegações de que tropas terrestres israelenses teriam sido informadas de que tudo dentro da faixa de Gaza era uma "ameaça", de que "não deveriam poupar munições" e de que os tanques dispararam contra prédios de modo aleatório ou vingativo, sem saber se eram alvos militares legítimos ou se havia civis em seu interior.

Mohammed Salem/Reuters
Menino palestino senta em sofá do lado de fora de casa que foi destruída no conflito do ano passado
Menino palestino senta em sofá do lado de fora de casa que foi destruída no conflito do ano passado

Em seus depoimentos, os soldados revelam regras de combate que eles caracterizaram como permissivas, "frouxas" ou quase inexistentes, incluindo o fato de alguns soldados terem sido instruídos a tratar qualquer pessoa flagrada olhando em direção às suas posições como sentinelas avançadas, contra os quais seria preciso atirar.

O grupo também afirma que, em relação ao disparo de bombas ou uso de artilharia e morteiros, os militares israelenses operaram com margens de segurança diferentes perto de civis ou de suas próprias tropas.

Em alguns momentos, as forças israelenses foram autorizadas a disparar muito mais perto de civis que de soldados israelenses.

Philippe Sands, especialista em direito humanitário internacional, descreveu os depoimentos como "vislumbres perturbadores sobre intenções e métodos".

"Talvez seja dito que os depoimentos são parciais e seletivos, mas não podem ser ignorados ou deixados de lado, considerando que vêm de pessoas que tiveram experiência em primeira mão. É preciso fazer uma investigação apropriada."

Descrevendo as regras que determinaram a vida ou a morte na faixa de Gaza durante os 50 dias da guerra —um conflito em que 2.200 palestinos foram mortos—, as entrevistas, pela primeira vez, lançaram luz não apenas sobre o que foi dito aos soldados individualmente, mas também sobre a doutrina que forneceu as diretrizes da operação.

Apesar de líderes israelenses terem insistido que foram tomadas todas as precauções necessárias para proteger a população civil, as entrevistas revelam um quadro muito diferente. Elas sugerem que a prioridade principal foi atenuar as baixas militares israelenses, mesmo que isso significasse elevar o risco para civis palestinos.

Enquanto a corregedoria militar das Forças de Defesa de Israel abriu investigações sobre vários incidentes individuais envolvendo alegados erros de conduta, os depoimentos dos militares levantam perguntas mais amplas sobre a política que norteou a guerra.

Os briefings dados aos soldados após o conflito sugerem que o alto número de mortes e casos de destruição foi visto como "realizações" por oficiais que avaliaram que o conflito manteria Gaza "quieta por cinco anos".

De acordo com um sargento, o tom foi definido antes da ofensiva terrestre em Gaza, que começou em 17 de julho, nos briefings que precederam a entrada de seis brigadas reforçadas no território.

"Isso aconteceu durante os treinos em Tse'elim, antes de entrarmos em Gaza, com o comandante do batalhão blindado ao qual fomos enviados", recordou um sargento, um entre dezenas de soldados israelenses que descreveram como a guerra foi travada na faixa litorânea no ano passado.

"O comandante falou: 'Não corremos riscos. Não poupamos munição. Descarregamos as armas, usamos o máximo possível de munição.'"

"As regras de combate foram mais ou menos idênticas", acrescentou um sargento de uma unidade de infantaria mecanizada em Deir al-Balah. "Qualquer coisa dentro [da faixa de Gaza] é uma ameaça."

"A área precisa ser 'esterilizada', esvaziada de pessoas. Se não virmos alguém agitando uma bandeira branca e gritando 'me rendo' ou algo assim, então a pessoa é uma ameaça, e há autorização para abrir fogo. O que se dizia é 'não existe uma pessoa não envolvida'. Naquela situação, todos estão envolvidos."

"As regras de combate para os soldados que avançavam em terra eram: abrir fogo, abrir fogo em todo lugar, assim que vocês entram", recordou outro soldado que participou da operação terrestre em Gaza. "A ideia era que, assim que entrássemos na faixa de Gaza, qualquer pessoa que ousasse mostrar a cabeça era terrorista."

Os soldados foram encorajados a tratar como "sentinelas avançadas" as pessoas que chegassem perto demais ou os observassem desde janelas ou outros pontos. Como tais, elas poderiam ser mortas, independentemente de haver ou não sinais claros de estarem atuando como olheiros para o Hamas ou outros grupos militantes.

"Se parecer que é um homem, dispare. Era simples: você está numa zona de combate", disse um sargento que serviu em uma unidade de infantaria no norte da faixa de Gaza.

"Algumas horas antes de a gente entrar, a área inteira era bombardeada. Se houvesse alguém lá que não parecesse evidentemente inocente, você aparentemente tinha de atirar na pessoa."

Definindo "inocente", ele disse: "Se você vê que a pessoa tem menos de 1,40 metro de altura ou se vê que é mulher. Se for homem, você atira."

Em pelo menos um caso descrito pelos soldados, duas mulheres foram mortas, mesmo assim, porque uma delas tinha um telefone celular.

Um soldado descreveu o incidente: "Depois de o comandante mandar o chefe do tanque ir vasculhar aquele lugar, três tanques foram verificar os corpos. Eram duas mulheres com mais de 30 anos, desarmadas. Elas foram listadas como terroristas. Foram abatidas a tiros, portanto só podem ter sido terroristas."

Os depoimentos colocam em dúvida se Israel cumpriu plenamente sua obrigação de proteger civis numa zona de conflito contra danos desnecessários.

A obrigação seria de distinguir entre civis e combatentes e assegurar que, no caso de ser aplicada força, isso só ser feito quando o risco de civis serem atingidos fosse "proporcional".

"Um dos principais elementos comuns nos depoimentos", disse Michael Sfard, advogado israelense de direitos humanos e assessor jurídico da organização Rompendo o Silêncio, "é a presunção de que, apesar de a batalha ser travada em uma área urbana —e uma das mais densamente povoadas do mundo—, não haveria civis nas áreas em que os militares ingressariam."

Segundo os soldados, essa presunção foi mantida graças a avisos lançados aos palestinos para que deixassem suas casas e seus bairros.

Os avisos foram feitos por meio de folhetos atirados de aviões e em mensagens de texto e telefônicas. Na interpretação das Forças de Defesa de Israel, isso significava que qualquer pessoa que permanecesse nas áreas não seria civil.

Mesmo na época, essa visão foi profundamente controversa, porque, segundo Sfard e outros especialistas jurídicos entrevistados, era uma reinterpretação das leis internacionais relativas ao dever de proteção de áreas contendo civis.

Sfard acrescenta: "Não estamos falando de uma decisão intencional de matar civis. Mas dizer que as regras de combatem foram frouxas é lhes dar crédito demais. Elas permitiram o combate em quase quaisquer circunstâncias, exceto quando se acreditava que isso colocaria um soldado das forças israelense em risco."

Se as regras de combate foram altamente permissivas, outros soldados dizem que também detectaram em suas unidades um estado de ânimo mais sombrio que também influenciou o comportamento dos soldados.

"O lema de muita gente era 'vamos mostrar a eles a que viemos'", recorda um tenente que serviu na brigada Givati em Rafah. "Era evidente que aquilo foi o ponto de partida. Muitos caras que cumpriram seu serviço militar de reserva comigo não têm dó dos palestinos."

"Havia muita gente lá que realmente odeia árabes. Realmente, realmente os odeia. Dava para ver o ódio em seus olhos."

Getty/BBC
Prédios destruídos e um cenário persistente de guerra em Gaza
Prédios destruídos e um cenário persistente de guerra em Gaza

Um segundo tenente reiterou seus comentários. "Dava para sentir uma radicalização no modo em que a coisa toda foi conduzida. O discurso foi extremamente de direita... O próprio fato de os palestinos serem descritos como 'não envolvidos', em vez de 'civis', e da insensibilidade em relação ao número crescente de palestinos mortos. Não importa se eles estão envolvidos ou não. Isso é algo que me incomoda."

Os depoimentos também sugerem que tenha havido infrações do código de ética das Forças de Defesa de Israel (FDI), que insistem: "Os soldados das FDI não devem usar suas armas e força para ferir seres humanos que não sejam combatentes ou prisioneiros de guerra e devem fazer tudo que está ao seu alcance para evitar ferir suas vidas, seus corpos, sua dignidade e propriedade".

Contrariamente a isso, porém, os depoimentos descrevem como soldados bombardearam edifícios de modo aleatório, ou sem finalidade militar evidente ou para fins de vingança.

Um sargento que serviu em um tanque no centro da Faixa de Gaza recorda: "Uma ou duas semanas depois de entrarmos na faixa de Gaza, todos estávamos disparando muito quando não havia necessidade, simplesmente por disparar, e um membro de nossa companhia foi morto".

"O comandante da companhia veio nos dizer que um cara foi morto devido a isso ou aquilo. Ele falou: 'Caras, fiquem prontos, entrem em seus tanques e vamos disparar uma saraivada em memória de nosso camarada.' Meu tanque foi até o posto —o lugar a partir do qual posso ver os alvos. Eu podia ver prédios. Atirei contra eles. O comandante do pelotão falou: 'Ok pessoal, agora vamos atirar em memória de nosso camarada', e nós concordamos."

O grupo Rompendo o Silêncio disse que o modo em que as forças israelenses usaram artilharia e morteiros na Faixa e Gaza levantou outras preocupações além das regras de combate e das ações de unidades específicas.

De acordo com a pesquisa do grupo, durante a guerra os militares israelenses seguiram dois conjuntos distintos de regras quanto à proximidade com soldados israelenses ou com civis palestinos em que determinadas armas podiam ser disparadas.

Yehuda Shaul, um dos fundadores do Rompendo o Silêncio e ele próprio ex-soldado, explica.

"Nossa pesquisa descobriu que houve três 'níveis operacionais' designados durante o combate, numerados de um a três. O nível operacional foi definido em um ponto mais alto da cadeia de comando. Acima da divisão de Gaza. O que esses níveis fazem é designar a probabilidade de baixas civis decorrentes de armas como artilharia de 155 milímetros e bombas, classificando-a de 'baixa' probabilidade a 'alta'."

"Descobrimos que, no caso dos disparos de artilharia nos níveis operacionais dois e três, as forças israelenses foram autorizadas a atirar muito mais perto de civis do que de forças israelenses amigas."

Antes do conflito —em que 34 mil artefatos foram disparados contra Gaza, dos quais 19 mil explosivos—, os oficiais de artilharia e cooperação aérea receberam uma lista de locais sensíveis.

Nestes, os morteiros não podiam ser atirados dentro de perímetros claramente definidos. Esses locais incluíam hospitais e escolas da ONU que estavam sendo usadas como centros de refugiados, mesmo em áreas cuja desocupação tinha sido ordenada.

"Mesmo assim", explica Shaul, "temos um depoimento que revela que um comandante sênior de brigada emitiu uma ordem explicando como se desviar daquela diretriz, instruindo que a unidade disparasse primeiro fora da área protegida e então pedisse disparos corretivos contra o local que queria atingir."

"Ele disse: 'Se você for para o rádio e pedir para atingir este prédio, teremos de dizer 'não'. Mas se você tiver um alvo situado 200 metros fora do perímetro, então você pode pedir uma correção. A única coisa que fica registrada é o primeiro alvo, não o disparo de correção."

E no final, apesar do alto número de baixas civis, os briefings trataram a destruição como uma conquista, algo que desencorajaria o Hamas no futuro.

"Pode-se dizer que eles viram a maioria das coisas examinadas como realizações", comentou um sargento do Corpo de Inteligência de Combate. "Eles falavam em números: 2.000 mortos e 11.000 feridos, meio milhão de refugiados, destruição que levará décadas para ser reconstruída. Danos a muitos membros seniores do Hamas e às suas casas e famílias. Essas coisas foram citadas como conquistas, para que ninguém duvidasse de que o que fizemos naquele período foi importante."

"Falavam em um período de cinco anos de calma (em que não haveria hostilidades entre Israel e o Hamas), quando na realidade foi um cessar-fogo de 72 horas, e no final daquelas 72 horas eles estavam disparando de novo."

Sem responder às alegações específicas, as Forças Armadas israelenses disseram: "As FDI têm o compromisso de investigar corretamente todas as queixas dignas de crédito levantadas pela mídia, ONGs e queixas oficiais relativas à conduta das FDI durante a operação Margem Protetora, com a maior seriedade possível."

"Vale notar que, depois da operação Margem Protetora, foram realizadas investigações completas, e soldados e comandantes tiveram a oportunidade de apresentar qualquer queixa. Incidentes excepcionais foram encaminhados ao corregedor militar para investigação adicional."

Tradução de Clara Allain


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