Folha de S. Paulo


Tragédia evidencia o desastre político vivido por nepaleses

Diante do rio Bagmati, Ashmita Thapa, 30, assiste ao corpo do primo ser desfeito pelo fogo ritual. No templo de Prashupatinath (Katmandu), ela fala à reportagem da Folha enquanto é coberta pelas cinzas que sobem do cadáver.

Seu primo, Pawan Basyal, 9, foi vítima de um desmoronamento causado pelo tremor do dia 25. Apesar de isso ter acontecido a 40 minutos da capital, o resgate tardou três dias. O corpo do garoto foi enfim encontrado por uma equipe polonesa-israelense.

"Estamos tristes que o nosso governo não tenha nos ajudado", afirma Thapa, durante o ritual da religião hindu, predominante no Nepal.

A recente tragédia nepalesa –com ao menos 6.600 mortos– trouxe à superfície, nesta semana, um desastre anterior: a política. Em viagem pelo país, a reportagem ouviu repetidas vezes cidadãos que não esperam nenhuma ajuda do governo.

Em alguns casos, os entrevistados nem pensavam que pudesse ser uma função do Estado prestar-lhes auxílio. Para diversos serviços, esses moradores contam há anos com organizações externas, ou consigo mesmos.

"Eles têm expectativas baixas em relação ao governo", diz Clare Castillejo, pesquisadora no think-tank europeu Fride, com sede em Madri.

"Aqueles de fora da capital têm um longo histórico de não receber diversos serviços. O fracasso dos partidos em desenvolver uma nova Constituição ou mudar o sistema político levou a uma grande decepção e ao ceticismo", diz.

Após uma guerra civil com milhares de mortos, o Nepal deixou de ser uma monarquia, em 2008, para tornar-se uma república laica.

Alternaram-se no poder desde então, em uma série de golpes, partidos que incluem maoistas e marxistas-leninistas e formaram-se complexas coalizões. O atual premiê, Sushil Koirala, lidera o partido de centro-esquerda Congresso Nepali. Koirala chegou ao poder no ano passado.

"Desde a guerra civil, houve uma série de mudanças na liderança e no governo, mas nenhuma resolveu as queixas da população que levaram ao conflito", afirma Castillejo.

O PIB do Nepal é de US$ 19,6 bilhões. O governo estima serem necessários US$ 2 bilhões para reconstruir casas, hospitais, prédios públicos e o patrimônio cultural. Hoje, o país é o 145º no Índice de Desenvolvimento Humano. O Brasil é o 79º.

SOBREVOO

Editoria de Arte/Folhapress

Em Trishuli, a três horas de Katmandu, Mohendra Moleko, 49, acampa no pátio de uma escola enquanto observa os helicópteros do governo, que sobrevoam o vilarejo, mas nunca pousam.

Ele reclama um teto e auxílio e por ora bebe a água do rio, em condições sanitárias precárias. "Nunca recebi nada do Estado. Nem antes do terremoto, nem depois."

Em uma tenda próxima dali, Anju Shakya, 40, diz que a única clínica local está destruída e sem suprimento médico. Quando a Folha esteve ali, quatro dias depois do tremor, nenhuma pessoa do governo havia sido vista.

"O Estado no Nepal, em suas diferentes formas, não foi capaz de conquistar a confiança das pessoas", diz Harsh Pant, pesquisador do King's College. "Além disso, a capacidade do governo é limitada. Com um desastre dessa magnitude, não há habilidade estatal para uma intervenção eficiente", afirma.

CORRUPÇÃO

Com a expectativa de especialistas de que um desastre como o terremoto do sábado passado pudesse ocorrer em breve, moradores têm demonstrado decepção ante o despreparo do poder público.

"Aqui, se você suborna os engenheiros do governo, eles aprovam qualquer construção", diz Kishab Joshi, 36, referindo-se aos altos índices de corrupção vistos no país.

Segundo a Transparência Internacional, o Nepal está na 126º posição no índice de percepção da corrupção divulgado em 2014 (o Brasil é o 69º).

Joshi também se queixa do isolamento de vilarejos –ainda sem receber ajuda, pela precariedade do acesso– e da infraestrutura, inclusive na capital. "Estamos contentes com a democracia, mas não com os políticos. Até hoje não tivemos bom governo."


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