Folha de S. Paulo


Geração que viu dois piores tremores do Nepal revive o medo

As pernas mal funcionam, a visão é embaçada e a memória costuma falhar.

Mas a nepalesa Ratna Kumari Shrestha, 94, ainda lembra os detalhes daquela segunda-feira, 15 de janeiro de 1934. Agricultora, ela trabalhava num arrozal quando tudo começou a tremer. Com dificuldade, correu de volta para casa e respirou aliviada ao ver que a família estava bem.

Ratna não sabia ainda, mas o país vivia um dos piores terremotos de sua história, que deixou mais de 10 mil mortos. Muito menos imaginava que estaria viva para escapar de um tremor quase tão forte 81 anos depois.

Quando ele veio, pouco antes do meio-dia do sábado (25), a agricultora aposentada estava em casa, a mesma em que morou a vida inteira.

Embora o terremoto de 1934 tenha sido mais intenso que o da última semana –o primeiro foi de magnitude 8, o de agora, de 7,8–, ela não tem dúvidas: "Este foi bem pior".

"Primeiro, porque foram vários seguidos e não apenas um só tremor, como aconteceu em 1934. Segundo, porque minhas pernas já não funcionam direito. Foi difícil sair de casa", contou Ratna à Folha, sentada entre as batatas e cebolas de um vendedor numa rua do centro histórico da capital, Katmandu.

Para a maioria dos nepaleses, o terremoto de 1934 passou a fazer parte do folclore popular, confinado aos livros de história, ilustrado por longínquas fotos em preto e branco de pessoas vestidas em roupas tradicionais em meio aos escombros.

Mas, acima de tudo, criou um trauma coletivo e a certeza de que o próximo grande terremoto era só uma questão de tempo.

DESPREPARO

Ratna e os poucos sobreviventes das duas tragédias são a memória viva de um tremor que está no DNA dos nepaleses. Pela precariedade dos milhares de casas que desabaram e pela demora na assistência do governo às vítimas, ficou claro que o país não estava preparado para o terremoto do último dia 25.

O número de mortos já passa de 6.600. Mas poucos se dizem surpresos, num país em que o fatalismo é uma marca da cultura hinduísta, religião de mais de 80% da população.

"Na nossa cabeça, a repetição do grande terremoto nunca foi uma questão de 'se', mas de 'quando'", diz o servidor público aposentado Ashalal Awale, que tinha cinco anos no desastre de 1934, quando escapou por milagre na hora em que sua casa desabou.

A casa foi reconstruída e ficou de pé no terremoto de sábado. Ashalal vive no mesmo local até hoje.

Em comum entre os dois desastres, ele aponta a incompetência do governo na ajuda às vítimas. Refletindo sobre a razão de ter sobrevivido a dois grandes terremotos, enquanto milhares morreram, ele recorre ao fatalismo.

"Acredito em carma", diz, referindo-se à crença hindu de que as ações de uma pessoa têm efeito em seu destino, tanto nesta vida como em futuras reencarnações. "Pelo visto levei uma vida moral."

A sensação de que o novo terremoto era uma tragédia anunciada tem o componente do fatalismo hindu, mas se baseia, principalmente, no histórico de que, a cada 70 anos, há um movimento sísmico de grandes proporções na região.

O Nepal está situado sobre uma falha geológica entre as placas da Índia e da Eurásia, o que faz do país um dos mais vulneráveis do mundo.

ACAMPAMENTO

O agricultor Rameshowr Ranjitkar, 81, nasceu no ano do grande terremoto de 1934, poucos meses após a tragédia.

Seus primeiros meses foram passados com a família em um acampamento improvisado, em condições semelhantes às de milhares de famílias desabrigadas pelo tremor da última semana.

Morando temporariamente num templo budista, ele insiste em conduzir a reportagem da Folha até a casa onde morava, na cidade histórica de Bhaktapur, a cerca de dez quilômetros de Katmandu.

Por fora, o pequeno sobrado está marcado por rachaduras. Por dentro, mesmo sem estragos causados pelo tremor, a sensação é incômoda no claustrofóbico quartinho onde o agricultor morava. Apesar do pouco conforto, Ranjitkar se diz angustiado por não poder retornar.

"Tenho medo que aconteça de novo, parece que meu corpo continua tremendo. De dia tento não mostrar o que sinto, mas à noite, quando fico sozinho, eu choro", confessa, com os olhos marejados.

Memória viva do histórico de catástrofes do país, os nepaleses com mais de 80 anos são também os mais vulneráveis. Deitado em uma maca no corredor lotado de um hospital de Katmandu, Samu Kaji Khadgi, 81, conta com dificuldade que perdeu a casa no último tremor.

Com uma fratura na bacia e sem ter para onde ir, sua angústia é visível nos olhos arregalados, ainda perplexos.

Nascido em 1934, ele também passou os primeiros meses de vida em um abrigo para vítimas do desastre daquele ano. "Nunca pensei que seria obrigado a voltar para um abrigo", diz Khadgi.

Ratna, a agricultora de 94 anos, também acredita em destino. Para ela, o terremoto é um sinal divino de que algo está errado.

Moradora da praça Durbar, centro histórico da capital que abriga vários templos importantes, ela acha que os nepaleses estão sofrendo por terem se afastado de Deus.

"Foi castigo divino", decreta a anciã.

Editoria de Arte/Folhapress

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