Folha de S. Paulo


Argumentos sobre casamento gay dividem juízes da Suprema Corte

A Suprema Corte dos Estados Unidos parecia profundamente dividida, terça-feira, sobre uma das grandes questões de direitos civis da era: determinar se a Constituição garante o direito ao casamento homossexual.

As perguntas dos juízes sugeriam que estavam divididos ao longo das linhas usuais –conservadores de um lado, progressistas do outro–, com o juiz Anthony Kennedy detendo o voto decisivo. Com base em suas declarações, ele parecia indeciso quanto ao que fazer.

Mas o tom de Kennedy pareceu mais emotivo e empático quando ele falou em favor do casamento homossexual. Esse fato, somado a algumas de suas decisões judiciais anteriores, oferecia razões para otimismo aos defensores do casamento homossexual, ao final das duas horas e meia de audiência.

Os juízes pareciam estar em conflito não só quanto à resposta certa no caso mas sobre como chegar a ela. As perguntas que eles fizeram iluminam as visões conflitantes que eles têm sobre história, tradição, biologia, interpretação da Constituição, o processo democrático e o papel dos tribunais em promover mudanças sociais.

Kennedy se declarou preocupado quanto a mudar uma concepção de casamento que persistiu por tantos anos. Mais tarde, porém, ele expressou reservas quanto a excluir as famílias de gays de uma instituição que definiu como nobre e sagrada.

Editoria de Arte/Folhapress
casamento gay EUA mapa

John Roberts Jr., o presidente da Corte, expressou preocupação quanto a bloquear um debate social que vem avançando rapidamente.

O juiz Samuel Alito Jr. questionou se grupos de quatro pessoas não deveriam, então, ser autorizados a se casar, enquanto o juiz Antonin Scalia afirmou que uma decisão em favor do casamento homossexual requereria que determinados membros do clero realizassem cerimônias que violam seus ensinamentos religiosos.

O juiz Stephen Breyer descreveu o casamento como uma liberdade fundamental. E as juízas Ruth Bader Ginsburg e Elena Kagan disseram que permitir o casamento homossexual não causaria danos a casais heterossexuais.

EXPECTATIVA DE DECISÃO

Até recentemente, a Suprema Corte vinha agindo com cautela e vagar em seu tratamento do casamento homossexual, sinalizando que não queria avançar com mais rapidez que o apoio público à causa e os desdobramentos estaduais sobre a questão indicam. Agora, porém, uma decisão definitiva deverá ser anunciada nos dois próximos meses.

Na abertura da audiência de terça-feira, Roberts disse ter estudado definições de casamento e que não havia encontrado qualquer uma escrita há mais de 12 anos que não definisse a prática como união entre homem e mulher.

"Se vocês saírem vitoriosos, essa definição se tornará inoperante", disse o presidente da Corte. "Vocês não estão tentando aderir a uma instituição; estão tentando mudar a instituição".

Kennedy, que muita gente considera como o voto decisivo no processo, expressou ceticismo diante da defesa da proposta pelos proponentes do casamento gay. Ele disse que a definição de casamento "nos acompanha há milênios".

"É muito difícil para o tribunal afirmar que 'sabemos melhor que todo mundo'", ele declarou. Scalia ecoou as preocupações de Kennedy sobre o peso da história e o surgimento relativamente recente do casamento gay.

Por volta da metade do pronunciamento de Mary Bonauto em favor do casamento homossexual, Scalia perguntou a ela se ela conhecia alguma sociedade "antes da Holanda em 2001 que permitisse casamentos homossexuais". Ele repetiu a observação de Kennedy de que a definição de casamento como união entre homem e mulher existe "há milênios".

Mais tarde, quando o advogado dos oponentes do casamento gay começou a se pronunciar, Breyer o questionou vigorosamente sobre a justificativa para que Estados possam proibir homossexuais de se casarem.

"O casamento está aberto a vasto número de pessoas", ele disse. Muitos casais homossexuais, acrescentou, "não têm possibilidade de participar dessa liberdade fundamental. E devemos perguntar por quê".

Diversos dos juízes mais progressistas pressionaram os oponentes do casamento gay para que explicassem exatamente como estender o direito de casar aos casais homossexuais prejudicaria os casais heterossexuais que desejem se casar.

Ginsburg foi especialmente direta quanto a isso.

"Você não tira coisa alguma dos casais heterossexuais" se o Estado permitir que casais gays se casem, ela afirmou.

A juíza Sonia Sotomayor parecia igualmente descrente, perguntando de que forma negar o casamento a casais homossexuais fortalece o casamento heterossexual.

John Bursch, advogado dos oponentes do casamento gay, argumentou em resposta que se as pessoas deixarem de acreditar que "casar e criar e filhos são correlatos", haverá mais crianças nascidas fora do casamento, o que ele caracterizou como problema para a sociedade.

Em 2013, os juízes contornaram a questão que agora decidiram considerar. Na época, porém, apenas 12 Estados e a capital, Washington, permitiam casamentos homossexuais.

De forma semelhante, a Corte em outubro se recusou a considerar recursos contra decisões que permitem casamentos homossexuais em cinco Estados.

A decisão imediatamente expandiu o número de Estados nos quais o casamento gay é legal de 19 a 24. De lá para cá, o número cresceu para pelo menos 36, e mais de 70% dos norte-americanos vivem em Estados que permitem casamentos homossexuais.

JURISPRUDÊNCIAS CONTRADITÓRIAS

Os juízes poderiam ter se contentado em ficar à margem. Mas uma decisão de um tribunal de recursos de Cincinnati, em novembro, forçou-os a julgar o caso.

Os três juízes do tribunal de recursos mantiveram, sem unanimidade, a proibição ao casamento gay nos Estados do Kentucky, Michigan, Ohio e Tennessee, afirmando que cabia aos eleitores e legisladores, e não aos juízes, decidir a questão.

A decisão do tribunal de recursos criou duas jurisprudências contraditórias nas decisões da instância de recursos, um dos critérios que a Suprema Corte leva em conta ao decidir se julgará um caso. Em outubro, esse fator não existia.

Os casais que contestam a proibição recorreram à Suprema Corte; em janeiro os juízes concordaram em arrogar o caso.

A última ocasião em que o Supremo aceitou considerar um desafio constitucional ao casamento homossexual havia sido em 2012. O caso, Hollingsworth vs. Perry, envolvia a Proposição 8, uma medida de referendo na Califórnia que tornou o casamento homossexual ilegal no Estado. Na época, nove Estados e a capital permitiam casamentos homossexuais.

Quando o tribunal decidiu, em junho de 2013, não tratou da questão central do caso. A maioria dos juízes considerou que o caso não era adequado ao foro da Suprema Corte, e nenhum deles expressou opinião sobre a validade constitucional do casamento homossexual.

Mas uma segunda decisão no mesmo dia, no caso EUA vs. Windsor, ofereceu forte impulso ao movimento pela legalização do casamento gay. A decisão considerou inválidos trechos da Lei de Defesa do Casamento, que proibia benefícios federais a casais homossexuais casados em Estados que permitam esse tipo de união.

A decisão do caso Windsor tomou por base argumentos federalistas, em alguma medida, e a opinião da maioria, redigida por Kennedy, enfatizava que as decisões estaduais sobre como tratar casamentos mereciam respeito.

Mas as instâncias inferiores deram mais atenção a outras porções da opinião, que enfatizavam a dignidade dos relacionamentos gays e os danos que as famílias de casais gays poderiam sofrer por conta de restrições ao casamento homossexual.

Nos casos da terça-feira, a Corte marcou duas audiências separadas. A primeira, de 90 minutos, tinha por objetivo determinar se a Constituição requer que Estados emitam licenças de casamento para "duas pessoas do mesmo sexo".

A segunda, com uma hora de duração, era para determinar se os Estados têm a obrigação de reconhecer casamentos gays realizados em outros territórios.

A Corte consolidou os quatro processos envolvidos, nem todos os quais envolviam as duas questões. É quase certo que venha a promulgar uma a decisão só para todos eles, e o processo consolidado será conhecido como Obergefell vs. Hodges, nº 14-556, um caso inicialmente proposto no Ohio.

O caso, como o do Tennessee, Tanco vs. Haslam, nº 14-562, contesta leis estaduais que proíbem o reconhecimento de casamentos homossexuais realizados alhures.

O caso do Michigan, DeBoer vs. Snyder, nº 14-571, foi aberto pelas enfermeiras April DeBoer e Jayne Rowse, para contestar a proibição estadual ao casamento homossexual.

No caso do Kentucky, Bourke vs. Beshear, nº 14-574, havia dois conjuntos de queixosos envolvidos. O primeiro compreendia quatro casais homossexuais casados em outros Estados que buscavam o reconhecimento de suas uniões. O segundo, formado por dois casais, queria o direito de se casar no Kentucky.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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