Folha de S. Paulo


Filho de vítimas da ditadura argentina conta como recuperou a identidade

Pablo Gaona Miranda, 37, é filho de desaparecidos políticos na Argentina e foi criado por uma família de civis amigos de um militar.

Estima-se que 400 crianças tenham tido o mesmo destino que ele.

Até agora, 116 foram identificadas. Pablo, o 106º "neto" desaparecido, descobriu sua identidade há quase três anos.

Sua família verdadeira vive na cidade de La Matanza, na Grande Buenos Aires, e hoje ele tenta reaver seu passado.

Leia abaixo seu relato à Folha.

*

Me chamo Pablo Gaona Miranda e tenho 37 anos. Até os 34, meu nome era Leandro Girbone.

Hoje sei que o dia do meu aniversário é 13 de abril. Mas por anos comemorei no dia 22 de julho.

Um dia perguntei à mulher que me criou, que considerei por anos como minha mãe, por que tinham escolhido essa data. Ela me disse que foi o dia em que tiveram o primeiro contato comigo.

Sou filho de María Rosa Miranda e Ricardo Gaona Paiva. Eles foram sequestrados em 14 de maio de 1978, quando saíam da casa dos meus avós. Nunca mais foram vistos.

Minha família é do Paraguai. Meu pai militava no Exército Revolucionário do Povo [na Argentina] e, naquela noite, voltavam de uma festa de comemoração da independência do Paraguai. Eu tinha um mês de idade quando fui levado.

Ninguém sabe dizer onde eu estive entre maio e julho de 1978.

O casal que me criou nunca escondeu que eu havia sido adotado.

Quando era adolescente comecei a perguntar sobre minha origem, se tinham conhecido meus pais. Me disseram que eu vinha de uma família desconhecida de Misiones [que faz fronteira com os três Estados do Sul brasileiro].

Eu estranhava o fato de minha certidão de nascimento ser de San Fernando [cidade na Grande Buenos Aires] se eu vinha do norte do país. Me diziam que foi para facilitar o registro.

Meu padrinho era um coronel reformado do Exército. Hoje sei que foi ele quem me entregou à família que me criou. Ele nunca me disse se conheceu meus pais, nem o que aconteceu com eles.

Arquivo pessoal
Pablo Gaona Miranda (de preto, no centro) em churrasco com tios e primos de sua família biológica
Pablo Gaona Miranda (de preto, no centro) em churrasco com tios e primos de sua família biológica

Comecei a desconfiar que era filho de desaparecidos políticos em 2001. As histórias de netos recuperados que surgiam me perturbavam profundamente. Mas eu tentava não pensar nisso.

Um dia eu estava muito triste e resolvi que iria procurar as "Avós [da Praça de Maio, organização que tem como finalidade encontrar filhos de desaparecidos durante a ditadura argentina]".

Eu acreditava mesmo que poderia ser um neto desaparecido. Contei isso à mulher que então era minha mãe. Em princípio, ela não deu bola, mas no dia seguinte chorou e implorou que eu não procurasse meus verdadeiros pais.

Isso foi em 2008. Eu sabia que, se procurasse minha identidade, ela poderia ser presa. Me senti muito culpado.

Fui criado como filho dela, junto com suas outras duas filhas. Mas o tempo passava e eu ficava olhando as fotos de desaparecidos, tentando ver se eu me parecia com alguém que estava naqueles retratos... Não tinha paz.

Levei dois anos para tomar a decisão de finalmente tirar a prova sobre minha identidade. Em junho de 2012, fui às "Avós", colhi sangue para um exame de DNA. Eles iriam bater meu resultado com o banco de DNAs que eles mantêm. A resposta não demorou muito a chegar.

Descobri minha história em 1º de agosto de 2012. Ainda me lembro da ligação de uma pessoa das "Avós da Praça de Maio" me pedindo para ir até lá.

Ela me disse para ir naquele mesmo dia e eu desconfiei que tinham encontrado minha família.

106º NETO

Quando cheguei, me apresentaram a dois homens que descobri que eram meus tios. Desde então sou o 106º neto restituído, filho de militantes de esquerda desaparecidos durante a ditadura militar.

Eu tive sorte, minha avó ainda é viva e minha família é especial. Meus tios são militantes políticos [os tios militam no Movimento Evita].

Depois disso, aderi ao Kolina por gratidão e identificação [o Kolina é um grupo de apoio ao governo Kirchner liderado pela filha de desaparecidos políticos Victoria Montenegro]. Mas ficaram diferenças. Sou torcedor do River, eles, do Independiente [risos].

Com a revelação, meu padrinho foi preso e o casal que me criou foi condenado a seis e oito anos de detenção cada um. Podem ir para a cadeia a qualquer momento.

Eu ainda os vejo, moramos perto. Eu fiz minha vida e meus amigos em Mataderos, onde morava com eles. Não posso mudar uma vida toda.

Tenho um sentimento estranho, me sinto traído. Descobri que as pessoas que me criaram, em quem eu deveria ter total confiança, me enganaram a vida toda. Mas não lhes desejo mal. No fundo, eles sabem que eu precisava conhecer a verdade.

Ainda há muitos netos perdidos na Argentina. Acredito que, como eu, muitos desconfiam que são filhos de desaparecidos políticos, mas não querem magoar ou punir as pessoas que os criaram.

É uma decisão difícil. Mas desde o dia em que soube da minha história, me decidi que me chamaria Pablo. Esse é meu verdadeiro nome.


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