Folha de S. Paulo


'Papa é menos católico que nós', diz bispo excomungado no Rio

Em um mosteiro isolado no sudeste do Brasil, um grupo separatista de católicos ultraconservadores estava reunido para participar de um ato de rebelião contra o papa.

O cenário dificilmente poderia ser mais pacato: colinas suaves e verdejantes, quaresmeiras roxas, folhas de palmeira dançando ao vento e uma capela temporária com paredes de blocos vazados de concreto e um telhado de zinco que a deixa parcialmente exposta aos elementos.

Mas os cerca de 50 padres, monges beneditinos, freiras e outros fiéis que chegaram ao mosteiro de Santa Cruz no sábado (28) não eram uma congregação comum. Provenientes da Europa, EUA e América Latina, eles se descrevem como movimento de "resistência" contra as reformas do Vaticano.

Stephen Eisenhammer - 28.mar.2015/Reuters
Bispo francês Jean-Michel Faure (centro) realiza missa em Nova Friburgo, perto do Rio de Janeiro
Bispo francês Jean-Michel Faure (centro) realiza missa em Nova Friburgo, perto do Rio de Janeiro

Defensores da missa em latim e inimigos ferozes do ecumenismo, da liberdade de religião e de relações mais próximas com o judaísmo, eles estavam lá para desafiar a autoridade de Roma, com a ordenação de um novo padre pelo bispo excomungado Jean-Michel Faure.

Foi a segunda cerimônia desse tipo nos últimos 30 dias.

Faure foi consagrado bispo sem autorização papal há apenas duas semanas, pelo bispo britânico Richard Williamson, que nega que o Holocausto tenha acontecido.

Em resposta, os dois clérigos foram automaticamente expulsos da Igreja, mas isso não deteve a campanha do grupo para criar um clero não licenciado pelo Vaticano.

A cerimônia remetia a uma era passada e mais conservadora. As mulheres se sentavam de um lado do corredor, com as cabeças cobertas por véus —mesmo as mais jovens.

Nas três horas de duração da cerimônia, a liturgia transcorreu quase inteiramente em latim, como os hinos, cantados por um coral de monges acompanhados por uma freira que tocava um órgão elétrico.

Antes de sua ordenação, o irmão André Zelaya de León se prostrou diante do altar e depois se ergueu e se posicionou de joelhos para que Faure abençoasse sua cabeça tonsurada.

Havia momentos em que as orações eram tão silenciosas que o barulho das cigarras e dos pássaros nas árvores praticamente as encobria.

Se excluídas as câmeras digitais e celulares —e o órgão elétrico—, a cerimônia seria reconhecível por séculos por crentes católicos, antes do que os ultraconservadores veem como mudança errônea de rumo empreendida pela Igreja Católica com as reformas democratizantes do Concílio Vaticano 2º, em 1962.

Depois da missa, Faure disse ao "Guardian" que o Vaticano estava destroçando a tradição e contrariando os ensinamentos de Pio 10, um firme conservador que foi papa entre 1903 e 1914.

"Não seguimos essa revolução. O atual papa está pregando doutrinas negadas por Pio 10. Ele é menos católico do que nós", declarou Faure. "Ele não segue a doutrina da fé que está nas palavras de Jesus Cristo."

A resposta do Vaticano à ordenação foi inequívoca. "A excomunhão é automática", disse um porta-voz.

Ele acrescentou: "Para a Santa Sé, a diocese de Santa Cruz, em Nova Friburgo, não existe. Faure pode dizer o que quiser, mas um católico, e ainda mais um bispo, obedece e respeita o papa."

Faure, religioso francês que trabalhou no México e Argentina, disse não aceitar essa decisão.

"A lei canônica estipula que uma excomunhão é válida se for consequência de um pecado mortal. Mas nosso pecado não é mortal. Estamos apenas seguindo nossa religião. Para fazê-lo, precisamos de padres, e para ter padres precisamos de bispos."

Ele comparou sua situação à de outros católicos na história, como Joana d'Arc, que foi inicialmente excomungada, mas posteriormente reconhecida por sua contribuição à igreja.

"Ainda que sejamos minoria agora, se você observar a história, somos maioria. Há todos os santos, os 250 papas e todos os católicos que pensam exatamente como nós."

Faure disse que se tornou bispo com relutância, pela possibilidade de que Williamson venha a morrer em um acidente, o que deixaria o grupo sem meios de ordenar padres.

Ainda que não o tenha declarado, o bispo francês pode substituir seu colega britânico como porta-voz do movimento.

Williamson provocou repetidas controvérsias com seus comentários que negam o Holocausto, elogiam o presidente russo Vladimir Putin como promotor da paz, alertam sobre a tomada da Europa pelos muçulmanos e afirmam que as mulheres estão tomando o poder nas empresas e nas Forças Armadas porque não estão cumprindo seu papel natural de "fazer bebês".

Williamson é um dos quatro bispos ordenados ilegalmente em 1988 por um arcebispo católico francês chamado Marcel Lefebvre, fundador da Sociedade de São Pio 10 e crítico declarado da liberalização de certas práticas da Igreja depois do Concílio Vaticano 2º, entre as quais o uso generalizado dos idiomas vernáculos como substitutos do latim na missa, o diálogo com outras religiões e os esforços de comunicação com o mundo laico.

Lefebvre e os quatro bispos foram todos imediatamente excomungados por participação em ordenações ilícitas, mas seu movimento vem sendo um incômodo para o Vaticano desde então.

Apenas cerca de 1 milhão de católicos —ou 0,1% da população católica mundial— se descrevem como seguidores de São Pio 10, mas sucessivos papas vêm tentando selar a brecha que os separa do catolicismo convencional.

Em 2009, o papa Bento 16 causou controvérsia ao cancelar a excomunhão dos quatro bispos e até prometer ao grupo autonomia diante de bispos que eles considerem muito liberais.

A decisão rapidamente criou problemas quando surgiu a revelação de que Williamson havia afirmado que nenhum judeu morreu nas câmaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial, que os EUA orquestraram os ataques terroristas do 11 de Setembro e que a maçonaria estava conspirando para destruir o catolicismo.

O Vaticano declarou naquele momento que Bento 16 não estava ciente das posições de Williamson sobre o Holocausto.

Alex Argozino/Editoria de Arte/Folhapress
Papa

Em 2012, Williamson foi excluído da fraternidade de São Pio 10, em parte porque discordava de sua disposição de abrir comunicações com Roma. Faure também foi expulso pela sociedade e sua ordenação não foi reconhecida.

"Todas as declarações do bispo Williamson e do padre Faure provam abundantemente que eles não reconhecem mais as autoridades romanas, exceto de forma puramente retórica", a sociedade afirmou em comunicado divulgado depois de sua ordenação.

Em contraste com seu predecessor, o papa Francisco dedica pouca atenção aos ultraconservadores.

Williamson declarou que não pretende fundar uma nova sociedade, mas o movimento agora consagrou um novo bispo e ordenou um padre, e Faure afirma que existem pelo menos dois bispos na Sociedade de São Pio 10 que simpatizam com a assim chamada "resistência".

Em conversa, os tradicionalistas parecem estar esperando por uma intervenção divina e dramática. Williamson, que se descreve como "britânico turrão", diz que espera um "gigantesco castigo", como o dilúvio de Noé.

Faure fala mais sobre a chegada de uma terceira guerra mundial.

"Seria horrível, mas mudaria o mundo. Mas o dia seguinte não seria como o dia anterior", disse Faure, apontando para os conflitos na Ucrânia, Síria e Iraque.

"Isso mudaria muitas coisas no mundo. Seria uma nova abordagem em muitos aspectos, e, por que não, na religião."

Por enquanto, porém, o grupo de cerca de 55 religiosos rebeldes precisa confiar em sua teimosa fé.

René Trincado, padre chileno expulso da Sociedade de São Pio 10 em 2013 por sua oposição a um acordo com o Vaticano, estava entre os presentes no mosteiro de Santa Cruz, que ele descreveu como a base das operações de resistência no Brasil.

"Não temos medo da excomunhão", disse Trincado. "Ela não tem validade."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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