Folha de S. Paulo


Inimigo nº 1 do presidente, jornalista faz oposição solitária em Angola

Alex Brenner/Index on Censorship
O jornalista angolano Rafael Marques de Morais, ao receber premio da organização Index on Censorship, em Londres, na quarta-feira (18)
O jornalista angolano Rafael Marques de Morais, ao receber premio da organização Index on Censorship, em Londres, na quarta-feira (18)

Em Angola, o presidente está no poder há 36 anos, o Parlamento e os tribunais são domesticados pelo Executivo, e os militares controlam a economia.

Cabe ao jornalista e ativista Rafael Marques de Morais, 43, exercer o papel de oposição quase solitária neste país africano rico em petróleo e diamantes, independente de Portugal desde 1975 e marcado por uma guerra civil que durou até 2002.

Na próxima terça (24), começa o julgamento dele em ação movida por sete generais por "denúncia caluniosa". Em um livro, o jornalista acusou-os de serem responsáveis por abusos cometidos por empresas de diamantes que controlam. A pena pode chegar a nove anos de prisão e multa de US$ 1,2 milhão.

"É assim que o presidente [José Eduardo dos Santos] se mantém no poder, permitindo que os generais tenham parte dos negócios do Estado. Em todos os setores onde haja dinheiro", diz Morais.

Será, nas suas palavras, um "julgamento político", fortemente influenciado pelo presidente e seu entorno.

Morais adota um estilo sem eufemismos e cheio de adjetivos duros em seu blog Maka Angola, o mais acessado por quem busca escândalos, denúncias e gafes do círculo de poder angolano ("maka", na língua local kimbundu, significa problema).

Por causa disso, coleciona seus próprios "makas". O maior foi em 1999, quando ficou 40 dias preso após chamar o regime angolano de "ditadura". Ainda hoje, Morais diz que é comum perceber carros suspeitos perto de sua casa em Luanda.

Talvez escolado pela prisão, ele atualmente usa com mais parcimônia o termo "ditadura". Prefere centrar críticas na corrupção em Angola, país que aparece como o 15º pior no ranking da Transparência Internacional, entre 175 pesquisados.

"Angola tem um regime altamente cleptocrático. Qualquer funcionário público, para sobreviver, tem de vender os serviços da sua função."

Uma cultura, segundo ele, que vem do topo e se espalha por toda a sociedade. "Hoje se compra diploma ou notas da primeira série ao último ano da universidades. É comum os alunos pagarem aos professores para escreverem as teses", diz.

Morais diz que o fato de ainda conseguir escrever seu blog é um "milagre", num país onde o jornalismo é estatal ou cooptado pelo governo. Diz que nem vai atrás de publicidade, porque associar-se à imagem do Maka é certeza de perda de clientes ou retaliação do Estado.

Financia-se com ajuda da ONG americana National Endowment for Democracy, faz trabalhos de consultoria e recebe doações de simpatizantes. Mas o mais difícil, diz, é sobreviver à blitz jurídica e política do governo.

"O jornalista em Angola para ser independente gasta mais tempo a conquistar o direito de publicar do que a fazer reportagens", lamenta-se.

Morais conta com o reconhecimento internacional como espécie de escudo a proteger sua integridade física.

Na última quarta-feira (18), recebeu em Londres mais um dos diversos prêmios que acumula, da organização britânica "Index on Censorship", voltada para a liberdade de expressão.

Entre suas reportagens recentes estão denúncias de que o presidente Santos quer mobiliar um palácio a custo equivalente a 24 mil casas populares e de planos para construir um memorial de guerra por US$ 72 milhões.

As fontes que utiliza são o Orçamento do Estado e dicas que recebe com frequência de diversas pessoas.

ANESTESIA

Apesar da corrupção evidente, não há nada em Angola que possa sugerir uma onda de protestos ou uma Primavera Árabe subsaariana.

O país apresenta um verniz de democracia, com multipartidarismo, eleições diretas e um simulacro de separação de Poderes. Mas a oposição é fraca e com menos de um quinto do Parlamento.

As taxas de crescimento, que chegaram a picos de 20% na década passada, puxadas pela exploração de petróleo, hoje estão em ainda respeitáveis 5%. Um boom de obras de infraestrutura, sob a liderança da brasileira Odebrecht, ajuda a anestesiar a sociedade civil.

Nada que impressione Morais, que vê muito de propaganda no "milagre angolano", país onde os índices de pobreza e desigualdade estão entre os piores da África.

"Qual o direito que o presidente tem de ficar no poder 35, 40 anos? Qual o direito tem de fazer dos fundos do Estado propriedade privada sua?", pergunta o inimigo número 1 do governo.


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