Folha de S. Paulo


Crise econômica faz venezuelanos adotarem 'jeitinho' para sobreviver

Assolados por anos de escassez de produtos básicos, os venezuelanos estão sendo obrigados a improvisar para sobreviver.

Quando não encontra sabão, Maritza Gallegos (nome alterado), 48, lava roupa com detergente para louça. Quando encontra, faz render.

Jorge Silva/Reuters
Compradores fazem filas enormes em busca de produtos de higiene pessoal em Caracas, na Venezuela
Compradores fazem filas enormes em busca de produtos de higiene pessoal em Caracas, na Venezuela

"Primeiro, lavo a roupa branca. Com a mesma espuma lavo o colorido e as calças jeans", diz Gallegos, funcionária de um shopping. "Em seguida pego mais sabão e também uso duas vezes: primeiro, toalhas, depois, lençóis".

No dia a dia dela também falta farinha de milho, com a qual se fazem as tradicionais arepas, espécie de sanduíche que muitos venezuelanos comem diariamente. "Às vezes só me resta inventar uma panqueca com água, farinha de trigo e açúcar", diz.

Papel higiênico tornou-se raridade. A última vez que a dona de casa Liseth Farias, 26, achou para comprar remonta a janeiro. "Tomo banho a cada vez que faço minhas necessidades", conta.

Moradora de uma favela, Liseth só compra em mercados estatais, onde o preço é regulado, mas também onde escassez e filas são maiores.

Como muita gente, ela recorre ao escambo. Recentemente, trocou desodorante por detergente. Sem fraldas para seu bebê, enrola as pernas da criança com absorvente íntimo.

Diante da escassez de fraldas, o funcionário público Pedro Murga, 55, diz ter se planejado. "Eu sabia que a coisa ia ficar feia, por isso passei a gravidez da minha mulher comprando fraldas de vários tamanhos."

A dificuldade de encontrar xampu é um tormento para muitas mulheres. Umas usam só água, outras improvisam com outros produtos, detergente de louça ou sabão em barra, como Ninoska Fuentes, 22. "Aqui não tem nada, é um desastre", suspira.

Editoria de Arte/Folhapress

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Venezuelanos de classe média compram em comércios privados, com oferta maior, mas onde os preços propalados por uma inflação de quase 70% se tornam cada vez mais proibitivos.

Um quilo de frango no supermercado privado Excelsior Gama custa até dez vezes mais que no estatal.

Quem tem maior poder de compra também pode se abastecer em camelôs, que proliferam principalmente em Petare, ao lado de Caracas, onde, reza a lenda, tudo pode ser encontrado.

Na prática, porém, o dinheiro às vezes não é suficiente diante da demanda pelos itens mais difíceis de encontrar, como remédios.

A Folha ouviu relatos de pessoas que tomam comprimidos pela metade para fazer render. Diante da falta de camisinhas, alguns casais reduzem o número de relações, outros buscam formas "criativas" de terminar o ato sexual. Há quem simplesmente assuma o risco de não usar.

Peças para veículos são outro problema. Mecânicos avaliam que apenas 20% da demanda é atendida.

Nos restaurantes, menus mudam o tempo todo em função da disponibilidade dos produtos. O dono de um dos principais cafés de Caracas trocou o leite de vaca pelo produto de búfala e cabra. Sem fermento industrial, passou a criar bactérias que geram um fermento natural.

"Estamos sempre testando receitas a base de novos ingredientes para substituir os que não encontro", disse.

Economistas dizem que o desabastecimento é resultado do controle de câmbio e de preços implantado pelo presidente Hugo Chávez e mantido por Nicolás Maduro.

Num país dependente da renda petroleira e que importa quase tudo, o problema vem se agravando com a queda do preço do barril.

O governo fala em "guerra econômica" e culpa empresários golpistas. Donos de farmácias e supermercados estão presos sob acusação de esconder mercadoria para criar filas e jogar a população contra o projeto socialista.

Autoridades tentaram várias maneiras de atenuar o problema, de controle biométrico de consumo até restringir o acesso aos mercados em função do número de identidade. Mas nada funciona.

Como muitos venezuelanos, a dona de casa Angela Rosales, 27, parece resignada. A cada sábado ela e o marido chegam de madrugada na fila ao Bicentenário [megamercado estatal] no centro de Caracas. Nos dias de sorte, saem de lá no meio da manhã. "Tenho escolha?", diz.


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