Folha de S. Paulo


Estratégia dos EUA no Iraque depende cada vez mais do Irã

Em um momento no qual o presidente Barack Obama está sob pressão dos republicanos do Congresso quanto às negociações sobre as ambições nucleares do Irã, um surpreendente paradoxo emergiu: Obama depende cada vez mais de combatentes iranianos em seus esforços para conter o grupo militante Estado Islâmico, no Iraque e Síria, sem ter de recorrer a forças terrestres norte-americanas.

Nos quatro dias transcorridos desde que forças iranianas se uniram a 30 mil soldados do Iraque para tentar retomar o controle de Tikrit, a cidade natal de Saddam Hussein, capturada pelo Estado Islâmico, representantes do governo dos Estados Unidos afirmaram que não estão coordenando ações com o Irã, um dos mais ferozes inimigos mundiais dos Estados Unidos, na luta contra um inimigo comum.

Isso pode ser tecnicamente verdade. Mas os planejadores de guerra dos Estados Unidos vêm monitorando de perto a guerra paralela entre o Irã e o EI por meio de uma série de canais, entre os quais conversações em frequências de rádio que os cada um dos lados sabe serem monitoradas pelo outro.

E as Forças Armadas dos dois países buscam evitar conflitos em suas atividades ao utilizar centros de comando iraquianos como intermediários.

Como resultado, dizem muitos especialistas em segurança nacional, o envolvimento do Irã está ajudando os iraquianos a manter a linha contra os avanços do EI até que os assessores dos Estados Unidos concluam o treinamento das Forças Armadas iraquianas, que vêm apresentando péssimo desempenho.

"A única forma de o governo Obama manter essa estratégia confiavelmente é presumir implicitamente que os iranianos arcarão com a maior parte do peso e vencerão as batalhas em terra", disse Vali Nasr, antigo assessor especial de Obama e hoje diretor da Escola de Estudos Internacionais Avançados na Universidade Johns Hopkins.

"Não se pode ter o bom sem o ruim - a estratégia norte-americana no Iraque vem tendo sucesso até agora principalmente por causa do Irã".

Foi o Irã que organizou as milícias xiitas do Iraque em agosto do ano passado para romper o sítio do EI a Amerli, um grupo de aldeias agrícolas cujos residentes xiitas enfrentavam a possibilidade de um massacre, depois de uma semana de isolamento. Os Estados Unidos apoiaram a ação por meio de bombardeio aéreo.

Funcionários do governo norte-americano fizeram questão de apontar, naquele momento, que os Estados Unidos estavam operando em Amerli com seus aliados - a saber, unidades do exército iraquiano e forças de segurança curdas.

Um importante funcionário do governo disse que "qualquer coordenação com milícias xiitas que tenha acontecido não foi realizada por nós; pode ter sido realizadas pelas FSI" - sigla que designa as forças de segurança iraquianas.

Mas a estratégia norte-americana no Iraque pode se beneficiar do esforço iraniano para recuperar o controle de Tikrit, mesmo que os norte-americanos não estejam diretamente envolvidos.

Depondo diante do Comitê de Forças Armadas do Senado, na terça-feira, o general Martin Dempsey, chefe do Estado-Maior Conjunto norte-americano, disse que o envolvimento de xiitas apoiados pelo Irã nos combates em Tikrit pode ser "positivo", desde que não exacerbe as tensões sectárias.

"O que temos é a presença mais aberta de apoio iraniano, em forma de artilharia e outras coisas", disse Dempsey. "Francamente, isso só será problema se resultar em sectarismo".

Mas a preocupação é grande. No passado –especialmente logo depois da retirada das forças norte-americanas do Iraque, em 2011– milícias xiitas foram acusadas de atrocidades contra os sunitas.

E em janeiro, o primeiro-ministro Haider al-Abadi ordenou uma investigação sobre acusações de que milicianos xiitas massacraram 70 pessoas na província de Diyala, depois que forças alinhadas com o governo expulsaram militantes do Estado Islâmico.

Esta semana, legisladores republicanos alertaram que a influência iraniana no Iraque cresceria com a ofensiva contra Tikrit.

"Compartilhamos do objetivo do presidente, que é reduzir o poderio do EI e derrotá-lo", afirmaram o senador John McCain, do Arizona, e o senador Lindsey Graham, da Carolina do Sul, ambos republicanos, em comunicado divulgado na terça-feira. "Mas o sucesso nessa missão não será obtido por meio da capitulação às ambições de hegemonia regional iranianas".

Landon Shroder, analista de inteligência para empresas que operam no Iraque, e que estava em Bagdá na metade do ano passado quando Mosul caiu, rebateu que a preocupação de que o Irã venha a expandir sua influência no Iraque ignora a realidade de que o governo xiita iraniano já é um aliado crucial do Iraque.

"A esta altura, todo mundo que observa o que acontece no Iraque com o Estado Islâmico deve saber que a principal influência sobre o Iraque é a o Irã", ele declarou em entrevista telefônica na quarta-feira. "Essa é uma percepção impopular nos Estados Unidos, que investiram muitos dinheiros e perderam muitas vidas no conflito, mas é a realidade".

Shroder disse que, no momento, a única força com a capacidade de unir tropas curdas, o exército iraquiano e milícias xiitas para o combate ao EI é o Irã.

Rafid Jaboori, porta-voz do primeiro-ministro Abadi, do Iraque, declarou em entrevista na quarta-feira que o Iraque havia instado Irã e Estados Unidos a não deixarem que seu conflito bilateral afete a batalha do Iraque contra o Estado Islâmico. "Até agora, em geral não há choques entre os dois", disse Jaboori.

Ele traçou uma comparação com a Segunda Guerra Mundial.

"Países com ideologias diferentes, prioridades diferentes, sistemas de governo diferentes, cooperaram para derrotar os nazistas", ele disse. "É previsível que vejamos países que podem não se dar muito bem em termos de relacionamento bilateral trabalhando juntos para ajudar o Iraque a derrotar essa ameaça".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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