Folha de S. Paulo


Opinião: Se britânicos quiserem aderir ao Estado Islâmico, que o façam

Uma das contribuições mais sagazes aos comentários e às lamentações gerados pelo desaparecimento de três estudantes secundaristas de Londres foi feita pelo ex-chanceler William Hague.

Indagado, num talk show da televisão no fim de semana, por que as meninas não tinham sido monitoradas ou impedidas de deixar o país, ele observou que perguntas sobre vigilância do Estado geralmente são acompanhadas pelo subentendido de que a ingerência do Estado é excessiva; neste caso, o que se quer indicar é que ela foi insuficiente.

Essa não é a única contradição a ser destacada pela ida de Shamima Begum, Amira Abase e Kadiza Sultana à Turquia, presume-se que com o objetivo de unir-se a combatentes do EI na Síria.

Hoje há chamados para que o Twitter e outros serviços de mídia social se esforcem mais para fechar sites usados para disseminar propaganda do Estado Islâmico e promover o recrutamento. Consta que uma das três estudantes estava cadastrada em 70 desses sites.

Para quem argumenta, na esteira da partida das meninas, que essas medidas são necessárias, até evidentes, eu diria: vamos com calma.

Um mês atrás, François Hollande e uma dúzia de outros líderes nacionais caminharam pelas ruas de Paris à frente de uma multidão enorme, em defesa da liberdade de expressão.

Não levou muito tempo para essa frente unida e toda sua certeza começarem a se desfazer. Quanta livre expressão conseguimos tolerar de fato?

A conveniência (ou não) da vigilância do Estado e a imposição (ou ausência) de limites à livre expressão são questões dificílimas. Mas existem perguntas mais fáceis relacionadas às três alunas da Bethnal Green Academy, perguntas às quais é possível arriscar respostas.

Algumas pessoas perguntam, com incredulidade, que atração o Estado Islâmico pode exercer sobre meninas britânicas. Será que é realmente tão difícil entender as atrações de uma viagem, especialmente uma viagem com finalidade altruísta e religiosa, para meninas que podem ter tido vidas muito protegidas e isoladas?

Isso pode soar insensível, mas a proteção estreita de suas famílias devotadas pode ser parte daquilo do qual essas meninas, e outras que fizeram a mesma viagem, tentaram escapar. Uma adolescente que regularmente acessa dezenas de sites islâmicos sem o conhecimento de sua família é alguém que, até certo ponto, está vivendo uma vida secreta.

Mas até onde o Estado deveria restringir a possibilidade de indivíduos viajarem simplesmente porque as autoridades desaprovam as finalidades de quem viaja? Uma das coisas que define um país livre é o direito de deixá-lo.

A posse de uma passagem aérea para a Turquia terá se tornado um fato suspeito, por si só? Se sim, podemos ter certeza de que outras rotas, mais indiretas, serão encontradas em pouco tempo.

Aos britânicos que querem juntar-se ao EI, eu diria: deixemos que vão. É mais um problema familiar que um motivo para o país se lamentar, e não vejo razão pela qual se devam enviar policiais, incorrendo em altos custos, num esforço para salvar essas meninas da situação em que elas próprias se colocaram.

Mas existe um modo pelo qual essas viagens poderiam ter sido impedidas, sem que sua finalidade suposta entrasse em consideração. Três meninas, longe de serem maiores de idade, puderam passar por um grande aeroporto britânico e embarcar sozinhas num avião com destino a outro país.

Uma razão disso, possivelmente a razão principal, é que o Reino Unido é praticamente o único país que não tem controles de saída de passageiros em seus portos e aeroportos.

Há pessoas -ou hoje, em muitos casos, máquinas-encarregadas de verificar a correspondência entre passaportes e passagens; há pessoas que fazem uma varredura de suas bagagens, por razões de segurança, e há comissários nos aviões que verificam seu cartão de embarque.

Mas não há ninguém encarregado de checar a idade e nacionalidade do passageiro em seu documento de identificação e perguntar, por exemplo, se os pais dele estão cientes de sua viagem.

O retorno dos controles de saída de passageiros é algo que está na agenda deste governo, mas parece ter sido adiado por tempo indeterminado. Assim como se pode argumentar que algo tão banal quanto medidas mais rígidas de segurança nos aeroportos poderiam ter prevenido o 11 de setembro, controles apropriados na saída poderiam ter impedido Shamima, Amira e Kadiza de embarcar.

Isso é algo que pode ser resolvido muito mais facilmente que os sonhos volúveis de adolescentes.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: