Folha de S. Paulo


Judiciário na Venezuela é usado para silenciar opositores, diz Anistia

Em seu relatório sobre as violações de direitos humanos em 2014, divulgado na noite desta terça (24), a Anistia Internacional destacou que o sistema judiciário na Venezuela "segue sendo usado para silenciar críticos do governo" e lembrou o uso excessivo da força aplicado pelas forças de segurança para conter os protestos contra o presidente Nicolás Maduro, nos quais morreram 43 pessoas em fevereiro de 2014.

Segundo o texto, o sistema de justiça da Venezuela "foi alvo da interferência do governo" em 2014, "especialmente em casos envolvendo críticos do governo ou aqueles que foram percebidos como tendo atuado de forma contrária aos interesses das autoridades".

O relatório, que traz o exemplo de Leopoldo López, líder Vontade Popular detido há um ano "apesar da falta de provas que apoiassem as acusações contra ele", foi divulgado quatro dias após a prisão de outro opositor : o prefeito metropolitano de Caracas, Antonio Ledezma, sob a acusação de conspirar para derrubar o governo.

Carlos Eduardo Ramirez/Reuters
Com sangue no peito, jovem se ajoelha diante de policiais após a morte do estudante Kluiverth Roa, em San Cristóbal (Venezuela)
Jovem se ajoelha diante de policiais após morte de estudante em San Cristóbal (Venezuela)

À Folha, o cientista político Maurício Santoro, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, disse que governos da região, como o Brasil, tem falhado ao não criticar mais duramente as recentes violações de direitos humanos na Venezuela.

"Nessa situação de fragilidade institucional extrema na Venezuela, uma posição forte por parte dos países vizinhos, como foi o caso no Paraguai, é um freio importante para criar pelo menos um sentimento no governo venezuelano de que ele não pode ultrapassar um determinado ponto, de que é necessário respeitar as normas e as regras", afirma Santoro.

Em 2012, o Mercosul suspendeu o Paraguai por, segundo seus integrantes, ter ferido a cláusula democrática do bloco após o "impeachment-relâmpago" que derrubou Fernando Lugo. A Venezuela entrou no Mercosul há um ano, e, segundo Santoro, deveria ser avaliada sob os mesmos critérios.

"Há uma série de arranjos institucionais que criam nos países vizinhos à Venezuela a obrigação de fazer esse monitoramento de violações de direitos humanos e de riscos para a ordem democrática", diz.

Na última sexta-feira (20), a presidente Dilma Rousseff disse que a prisão de Ledezma é uma "questão interna" da Venezuela.

ARMA POLÍTICA

Para Santoro, o que mudou é que, a partir da morte de Hugo Chávez (2013) e da ascensão de Nicolás Maduro, houve um acirramento do conflito político na Venezuela, e o Judiciário "passou a ser usado de uma forma mais intensa como uma arma política".

"O que antes a gente vinha ressaltando era mais a questão da perda de independência dos juízes. Dos protestos [de 2014] para cá, temos visto que líderes da oposição são presos em processos de procedência muito duvidosa", diz.

"As acusações que estão sendo feitas pelo governo são muito frágeis e não vimos absolutamente nenhuma evidência, nem no caso do Ledezma, nem no caso do Leopoldo López, que apontasse para essa suposta conspiração que o governo tem apresentado como motivação da prisão", completa.

O relatório detalha casos em que pessoas foram feridas em protestos, detidas arbitrariamente e torturadas nas prisões na Venezuela. "As forças de segurança usaram força excessiva para dispersar os protestos. Entre as medidas usadas, estavam o uso de munição real, a uma curta distância, contra pessoas desarmadas", diz o texto.

CONSELHO DE SEGURANÇA

O relatório da Anistia traz um levantamento das violações de direitos humanos em outros 160 países em 2014, e dá destaque aos conflitos na Síria, no Iraque, em Gaza e na Nigéria. Cita, em especial, o avanço de atores não estatais, como as milícias radicais Estado Islâmico (EI) e o Boko Haram.

No primeiro caso, o organismo denuncia o fracasso constante do Conselho de Segurança em responder à crise na Síria, no qual "incontáveis vidas humanas poderiam ter sido salvas". "O fracasso seguiu em 2014. Nos últimos quatro anos, mais de 200 mil pessoas morreram, em sua maioria civis, e a maioria em ataques por forças do governo", diz o texto.

Diante do cenário, a Anistia declara apoio, no relatório, à proposta da França de que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – França, EUA, Reino Unido, China e Rússia– renunciem seu direto a veto em questões que envolvam crimes de guerra.

"A Anistia Internacional acolheu a proposta, agora apoiada por cerca de 40 governos, para que o Conselho de Segurança da ONU adote um código de conduta no qual concorde em voluntariamente abrir mão de usar o veto para bloquear a ação do Conselho em situações de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade", diz o texto. "Isso seria um importante primeiro passo, e poderia salvar muitas vidas."

No caso da Síria, o principal impasse é mantido pela Rússia, que apoia o regime de Bashar Al Assad, mas Santoro cita o veto constante dos EUA sobre questões envolvendo Israel e Palestina como outro exemplo de entrave para fazer avançar soluções políticas para os conflitos.

NIGÉRIA

No caso da Nigéria, a Anistia destaca os crimes e sérias violações de direitos humanos cometidos "pelos dois lados" no conflito entre forças do governo e a milícia radical Boko Haram.

"Ataques violentos pelo grupo armado Boko Haram contra alvos do governo e civis sofreram uma escalada. Desde julho, o Boko Haram capturou e ocupou mais de 20 cidades nos Estados de Adamawa, Borno e Yobe, matando várias centenas de civis ao longo do nordeste do país, em áreas sob o controle do grupo", diz o texto.

O levantamento lembra o rapto de 276 meninas na cidade de Chibok como um dos mais emblemáticos e que ganhou maior repercussão na mídia. "O Boko Haram forçou as mulheres e meninas raptadas a se casarem [com seus integrantes], recrutou homens à força e torturou pessoas que vivem sob seu controle e violaram suas regras."

"Mas menos noticiados foram os crimes terríveis cometidos pelas forças de segurança e aqueles trabalhando para eles contra pessoas que eles acreditavam ser membros ou apoiadores do Boko Haram", afirma o organismo. "A tortura pela polícia e as forças de segurança foi generalizada."


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