Folha de S. Paulo


Oriente Médio se une contra EI, mas com estratégias diferentes

Quando filmou um piloto jordaniano sendo imolado numa jaula, o Estado Islâmico (EI) teve a intenção de aterrorizar seus inimigos e a esperança evidente de enfraquecer a determinação dos países árabes que se uniram à coalizão global liderada pelos EUA que combate o grupo jihadista.

Em vez disso, porém, a brutalidade extrema da execução, transmitida para todo o mundo na semana passada, parece ter levado governos árabes e autoridades religiosas muçulmanas a intensificar sua oposição ao EI, expressa em condenações furiosas e iniciativas militares de perfil alto, mas limitadas.

Enfurecida com a imolação do tenente Muath al-Kaseasbeh -e a ameaça de que outros pilotos terão o mesmo fim cruento–, desde a quinta-feira (5) passada a Jordânia mandou 20 caças para bombardear o leste da Síria. É sua maior operação aérea desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967.

"Nossos corações sangram de tristeza e cólera", disse a rainha Rania na segunda-feira (9). "Meu país, a Jordânia, enfrenta a crise com paciência, fé e a determinação de combater o terrorismo e vingar-se daqueles que estão cometendo as atrocidades mais hediondas e brutais de nossos tempos."

Os Emirados Árabes Unidos, outro membro árabe sunita da coalizão, despacharam um esquadrão de caças F-16 à Jordânia, depois de terem suspendido suas operações após a captura de Kaseasbeh. Disseram que a cooperação árabe é necessária para pôr fim aos "atos monstruosos" de "gangues terroristas" e proteger a moderação.

A Arábia Saudita e o Bahrein, as outras "nações árabes parceiras" do presidente americano, Barack Obama, também lançaram declarações de solidariedade com o reino hachemita.

No Cairo, o xeque Ahmad al-Tayyeb, o grão imã da al-Azhar, a maior instituição mundial de estudos sunitas, condenou o EI, qualificando seus seguidores de "corruptores da Terra" que travam guerra contra Deus e o profeta e, por isso, merecem o castigo da morte, crucificação e amputação de membros, prevista em seu texto sagrado.

A participação árabe é vista como vital para a credibilidade da meta de Obama de "degradar e destruir" o EI. Mas sua importância, até agora, tem sido mais política que militar. Dos cerca de 2.000 ataques aéreos lançados na Síria, menos de 10% foram de forças aéreas árabes, embora nunca tenham sido divulgados números completos a esse respeito.

Tirando um surto de publicidade inicial, nenhum país árabe alardeou o que seus pilotos estavam fazendo, por medo de sofrer retaliação ou uma reação de simpatizantes jihadistas em casa. "Isso tem sido parte do problema", comentou um diplomata ocidental estacionado em Amã. "As pessoas nem sequer sabiam que a Jordânia estava bombardeando o EI."

Mas as reações de repulsa, por compreensíveis sejam, não parecem ser indicativas de uma mudança importante no modo como a campanha está sendo realizada. "A ira da Jordânia é justificada, mas o país não tem muito o que acrescentar, em termos militares", ponderou Mustafa Alani, do Centro de Pesquisas do Golfo, em Dubai.

"Os jordanianos estão retaliando devido ao assassinato brutal de seu piloto, mas eles só têm 20 caças F-16. Agora que os alvos fixos e a infraestrutura já foram atingidos, as operações aéreas estão chegando ao limite de sua utilidade, de qualquer maneira. Os ataques aéreos dependem muito de inteligência humana, além de eletrônica, e há uma escassez enorme de inteligência precisa. Depois de seis meses, o que foi realizado é muito limitado."

O Egito, que já deixou de pedir a saída de Bashar Assad e está tentando reconstruir sua influência regional, está preocupado com a insurgência jihadista crescente no Sinai e quer ajuda do Ocidente para combatê-la.

Alani e outros analistas dizem que as esperanças de fazer a maré virar contra o EI agora estão voltadas não aos ataques aéreos mas a uma ofensiva terrestre prometida no Iraque, especificamente a recaptura de Mossul, cuja queda dramática em junho do ano passado chocou o mundo. Forças terrestres árabes não participarão da ofensiva, mas os sauditas estariam assinalando sua disposição de dar apoio financeiro.

Mesmo assim, ainda há desconfiança em relação ao governo de maioria xiita de Haider al-Abadi, em Bagdá, com poucos avanços perceptíveis nos esforços para emancipar uma comunidade sunita ainda inconformada com sua perda de poder desde a derrubada de Saddam Hussein na invasão de 2003, liderada pelos EUA.

Os sunitas temem uma "libertação" às mãos de um Exército iraquiano apoiado por milícias xiitas -que colaboram estreitamente com a Guarda Revolucionária iraniana e são acusadas de atrocidades sectárias em áreas retomadas do EI.

Assim, apesar do horror da execução de Kaseasbeh, a impressão é que o momento atual não é de virada. "Acho que a resposta jordaniana à morte do piloto, por mais esta tenha sido grotesca e chocante, não pode isoladamente representar uma solução", comentou John Jenkins, que se aposentou recentemente do cargo de embaixador britânico na Arábia Saudita e hoje é diretor para o Oriente Médio do Instituto de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês).

"Uma vez que a sede de vingança for saciada, vamos voltar à patologia inicial: basicamente, não é possível usar milícias xiitas para vencer uma batalha 'sectarizada' pelos corações e mentes sunitas. E o Iraque e o Iêmen, de maneiras distintas, representam exatamente isso. Enquanto isso, Assad está gargalhando."

O comentarista americano Aaron David Miller observou: "Por mais que possa ser tentador enxergar a morte [do piloto] como ato transformador, é provável que não o seja. Além de uma coordenação militar adicional com a Jordânia, só podemos prever a continuação da estratégia global para frear os avanços do Estado Islâmico no Iraque e o plano para assistir as forças iraquianas na retomada de... Mossul e outras áreas. A campanha aérea vai continuar contra o Estado Islâmico na Síria. Mudanças mais amplas da política americana em consequência do assassinato do piloto -por exemplo, o envio de grande número de tropas terrestres-parecem pouco prováveis."

As autoridades dos EUA dizem que tropas terrestres serão necessárias para derrotar o EI tanto no Iraque quanto na Síria, mas insistem que essas tropas devem ser compostas de iraquianos e rebeldes sírios moderados. Os EUA já começaram a treinar forças iraquianas. O esquema para "treinar e equipar" sírios só está previsto para começar na primavera do hemisfério Norte.

Especialistas regionais concordam que os países árabes ainda têm reservas profundas em relação à estratégia global de Obama para o Oriente Médio. "O modo horrendo e provocante em que Kasasbeh foi executado silenciou momentaneamente as críticas à coalizão e obrigou as lideranças árabes a tomar algumas medidas para projetar resolução e aplacar suas próprias bases", disse o analista Emile Hokayen, do IISS.

"Mas é pouco provável que esta tragédia mude decisivamente a opinião dos países árabes em relação à campanha. Sua discordância em torno da estratégia dos EUA, sua frustração com os acontecimentos no Iraque e seus receios quanto ao Irã continuam fortes."

Tradução de CLARA ALLAIN


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