Folha de S. Paulo


Atentados na França provocam reflexão sobre natureza do islã

CAIRO - A onda de atentados cometidos em nome do islã está provocando debate entre os muçulmanos do Egito, sobre o porquê de sua religião estar sendo citada com tanta frequência como causa de violência e derramamento de sangue.

A maioria dos estudiosos e fiéis diz que o islã não é inerentemente mais violento que outras religiões. Mas alguns muçulmanos argumentam que a visão contemporânea de sua fé está contaminada com justificações de violência. Por isso, eles querem que o governo e seus clérigos oficiais corrijam os ensinamentos do islã. "É inacreditável que o pensamento que é sagrado para nós leve a comunidade muçulmana a ser fonte de preocupação, morte e destruição em todo o mundo", lamentou o presidente Abdel Fatah al-Sisi, do Egito, em discurso a clérigos do establishment religioso oficial, pedindo uma "revolução religiosa".

Outros, porém, insistem que a violência -como o massacre de 12 pessoas na Redação do jornal francês "Charlie Hebdo" e o assassinato de quatro outras num mercado kosher em Paris- é provocada pela alienação e o ressentimento, não pela teologia. Eles argumentam que os governantes autoritários de países árabes, que há décadas vêm procurando controlar o ensinamento muçulmano e a aplicação da lei islâmica, desencadearam uma violenta reação que se expressa em ideias e linguagem religiosas.

Rizwan Tabassum - 17.dez.2014/AFP
Estudantes paquistaneses rezam pelas 132 crianças mortas em ataque do Taleban a uma escola
Estudantes paquistaneses rezam pelas 132 crianças mortas em ataque do Taleban a uma escola

Promovido por grupos como o Estado Islâmico ou a Al Qaeda, o discurso alcança comunidades muçulmanas em lugares tão distantes quanto Nova York ou Paris.

"Algumas pessoas que se sentem esmagadas ou ignoradas vão buscar o extremismo, e elas usam a religião porque é isso que têm ao seu alcance", explicou Said Ferjani, do partido islâmico Ennahda, da Tunísia, falando da violência cometida em nome do islã.

O historiador egípcio Khaled Fahmy estava lecionando na Universidade de Nova York em 11 de setembro de 2001, data depois da qual as vendas do Alcorão nos EUA cresceram devido aos leitores que buscavam explicações religiosas para o ataque a Nova York.

"Elas estavam fazendo a pergunta errada", disse Fahmy. Segundo ele, a religião era apenas uma fachada atrás da qual se escondia a raiva com os Estados árabes disfuncionais deixados pelas potências coloniais e com a condescendência "orientalista" que muitos árabes ainda sentem por parte do Ocidente.

"Os Estados árabes não realizaram o que deviam, e isso só pode levar a um sentimento profundo de ressentimento e frustração ou então à revolução. É a não violência que precisa ser explicada, não a violência."

Poucos culpam o próprio islã pela violência.

"O que o Estado Islâmico fez que não foi feito por Maomé?", questionou recentemente um ateu destacado, Ahmed Harqan, num talk show popular da televisão egípcia, argumentando que o problema da violência é inerente ao islã. Considerado quase blasfemo pela maioria dos muçulmanos egípcios, o desafio provocou semanas de reações de ultraje de emissoras religiosas islâmicas. Em debates subsequentes no mesmo programa, Salem Abdel-Gelil, acadêmico do instituto Al Azhar, patrocinado pelo Estado, respondeu com versos islâmicos sobre tolerância, paz e liberdade. E então avisou que a defesa pública do ateísmo poderia levar seus adversários à prisão.

O cientista político Steven Fish, da Universidade da Califórnia em Berkeley, buscou quantificar a correlação entre islã e violência. Em seu livro "Are Muslims Distinctive?", ele diz que os índices de homicídio são substancialmente mais baixos nos países de maioria muçulmana e que as instâncias de violência política não são mais frequentes que em outros países.

No mundo muçulmano, porém, a discussão sobre a conexão do islã com a violência ganhou novo ímpeto com os acontecimentos recentes: o afastamento pelos militares do presidente eleito do Egito, o islamita Mohamed Mursi; a repressão mortífera contra os seguidores da Irmandade Muçulmana e uma campanha de ataques retaliatórios contra as forças de segurança; a ascensão do sanguinário Estado Islâmico na Síria e no Iraque.

Extremistas islâmicos decapitaram jornalistas ocidentais, massacraram milhares de iraquianos e assassinaram 132 estudantes paquistaneses.

Sisi, ex-general, comandou a deposição de Mursi em 2013 e a repressão à Irmandade Muçulmana, baseado em acusações de que ela seria um "grupo terrorista" violento (o grupo denunciava a violência havia décadas). Ele também tenta reafirmar o controle do Estado sobre o ensinamento do islã.

Intelectuais que o apoiam aplaudiram seus esforços e convocaram o Estado a liderar uma revisão abrangente, de cima para baixo, do entendimento popular do islã. "O pensamento religioso, ou o discurso religioso, é marcado pelo atraso", declarou o ministro da Cultura, Gaber Asfour, recentemente.

Muitos intelectuais pró-governo veem a popularidade da Irmandade Muçulmana como um aspecto desse atraso e argumentam que todos os movimentos políticos islâmicos como ela são inerentemente violentos, mesmo que reneguem a violência publicamente.

"O propósito deles não é se modernizar, mas criar um novo mundo em que o islã volte ao comando", argumentou o historiador Sherif Younis, da Universidade Helwan, no Cairo, e autor de chamados por uma reforma islâmica.

"Todo fundamentalista aspira criar um contrarregime, mesmo que não saiba usar uma espada", disse Younis. Segundo ele, isso inclui os islâmicos centristas da Irmandade Muçulmana e os ultraconservadores conhecidos como salafistas, além dos grupos jihadistas abertamente violentos como o Estado Islâmico ou a Al Qaeda.

Outros argumentam que o controle governamental sobre os establishments religiosos muçulmanos, quer seja em países relativamente seculares, como o Egito ou os Emirados Árabes Unidos, ou em países explicitamente religiosos, como a Arábia Saudita, apenas reforça o problema.

Alguns dizem que é ingenuidade esperar que governos como o do Egito, que não prestam contas de seus atos e não conseguem oferecer saúde ou educação à população, façam um trabalho melhor no comando de uma reforma religiosa.

"Numa sociedade autoritária, não há espaço para o debate baseado em argumentos racionais. Logo, não surpreende que o discurso religioso irracional se fortaleça em setores do Egito ou do mundo árabe", argumentou Mohammed Fadel, estudioso das leis islâmicas, da Universidade de Toronto.

"Mas a resposta desses governos vem sendo redobrar a repressão, e isso provavelmente só fará o extremismo crescer ainda mais."

Colaborou Merna Thomas


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