Folha de S. Paulo


Crítico do 'New York Times' conta filme cancelado após ataque à Sony

Não faz mais diferença, mas alguém devia ter dito ao Kim Jong-Un que "The Interview" não trata exatamente de um plano para explodi-lo.

Claro, o clímax narrativo da obra mostra seu personagem sendo vaporizado por uma granada disparada por um foguete. Mas seus pontos altos de comédia e emoção chegam antes, quando ele faz amizade com um apresentador de televisão norte-americano sem noção. Outro ponto alto é quando o americano um pouco menos sem noção interpretado por Seth Rogen precisa esconder o controle de um míssil no reto.

Agora que "The Interview" foi engavetado depois de um ataque aos sistemas de computador e à imagem corporativa da Sony Pictures, segundo o FBI instigado pela Coreia do Norte, sua verdadeira natureza permanecerá sendo um mistério ao menos até que uma cópia boa e segura apareça em sites de compartilhamento.

Tendo assistido, posso lhes dizer o que vocês já devem ter imaginado: o único verdadeiro mistério é como algo tão ordinário pode ter causado tanta agitação.

Antes de prosseguir, preciso revelar algumas coisas: assisti a "The Interview" numa cabine de imprensa no multiplex Regal, na Times Square, em 10 de dezembro, seis dias antes de os hackers que invadiram a Sony terem ameaçado atacar os cinemas que o exibissem. Eu não planejava escrever a respeito, e por isso não prestei grande atenção e nem tomei notas. Então, isto não é exatamente uma resenha, e sim uma recordação levemente nebulosa, tornada ainda mais nebulosa pelas margaritas que me foram dadas antes.

Alcoolizar uma plateia exclusiva é um sinal bastante razoável de que um estúdio tem fé menos do que completa num filme, embora talvez nesse caso os drinques fossem apenas para acalmar nossos nervos.

O filme que vimos pode ter sido incomum ao mostrar o fim violento de um chefe de Estado atual. Mas, por qualquer outro ponto de vista em que você possa pensar, era uma típica comédia de insegurança do macho norte-americano do século 21, um gênero em que seus astros, Rogen (também diretor do filme) e James Franco, têm longa experiência.

A verdadeira ameaça em "The Interview" não é um ditador com um parafuso a menos, e sim os terrores noturnos da solidão e de inadequação que parecem assombrar uma ampla fatia dos homens de 30 e poucos, 40 e poucos anos em Hollywood - terrores sublimados na tela com "bromance" choroso, humor escatológico, nudez feminina gratuita e insinuações de homossexualidade.

Como qualquer interessado certamente já sabe, Franco e Rogen fazem o papel de apresentador e produtor de um talk show estilo tabloide, que descobrem que Kim é um fã. Sonhando com a glória e com o prêmio Peabody, eles marcam uma entrevista e recebem o pedido de uma agente da CIA (Lizzy Caplan, de "Mestres do Sexo") para envenenar o entrevistado.

Durante a parte de ambientação do filme, realmente não há muito a observar além da perfomance divertidamente maneirista de Franco como o simplório entusiástico David Skylark. Há algumas poucas piadas muito boas no roteiro de Dan Sterlin, mas as situações insinuantes de amizade masculina são familiares, a direção de Rogen e Evan Goldberg não faz nada para torná-las mais vívidas e há pouca evidência do orçamento de US$ 44 milhões (excluindo custos de promoção) na aparência pobre do filme.

As coisas melhoram na segunda metade, quando a ação passa à Coreia do Norte. Isso, em parte, porque há comédia pastelão e explosões para ver. Mas é principalmente porque Randall Park, no papel de Kim, e Diana Bang, no papel da responsável por guiar os visitantes norte-americanos, dão ao filme as melhores, mais divertidas e mais acabadas performances.

Park chega perto de transformar Kim num verdadeiro personagem, alternando-o entre o lacrimoso e o feroz, mas no final o esforço se revela fútil. No retrato do filme, Kim é apenas outro crianção triste e sentimental, só que um crianção malvado, o que significa que ele merece uma granada (quase) no rosto. Os realizadores não se comprometem em fazê-lo vilanesco, mas precisam se livrar dele, com o resultado de que o golpe de misericórdia fica manjado e pouco persuasivo.

Aquele sentimento de incerteza, de falta de confiança em suas convicções cômicas, permeia o filme. Mesmo os obrigatórios toques estereotípicos ou fetichistas - uma rápida referência a comer cachorros, uma passada de topless, mulheres asiáticas se contorcendo - ficam meia-boca.

Após ver "The Interview" e a confusão que sua mera existência causou, a única reação razoável é o pasmo perante a imensa desconexão entre a inofensividade do filme e a ferocidade da resposta. (E enjoo da prontidão de donos de cinemas e da Sony em aceitar essas ameaças desproporcionais.)

Mas talvez, de uma maneira distorcida e abstrata, haja uma conexão. Se você fosse dizer que o tipo de comédia "bromântica", transgressiva e de imaturidade que o filme representa é a expressão na cultura pop do medo do homem norte-americano quanto a sua própria invalidez num mundo pós-11 de Setembro, pós-crise econômica, pós-propriedade intelectual, então é até engraçado que "The Interview" tenha sido derrubado por um ato de terrorismo.


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